O MEIO AMBIENTE COMO ESTORVO
EDIÇÃO 153 |
JUNHO_2019
questões brasileiras
A guerra aberta e a guerra velada entre o governo Bolsonaro e as forças que resistem ao desmatamento
BERNARDO ESTEVES
Ricardo Salles foi à Amazônia pela primeira vez na vida em fevereiro, onde visitou uma plantação – que era, porém, ilegal. Foi fotografado a bordo de uma colhedeira, ao lado da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e do ruralista Nabhan Garcia
Ricardo Salles foi à Amazônia pela primeira vez na vida em fevereiro, onde visitou uma plantação – que era, porém, ilegal. Foi fotografado a bordo de uma colhedeira, ao lado da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e do ruralista Nabhan Garcia FOTO: TCHÉLO FIGUEIREDO_SECOM/MT
O MINISTRO
Em meados de março, marquei um almoço em Brasília com um funcionário do Ministério do Meio Ambiente num restaurante do Plano Piloto. Ao chegar, ele avaliou que o lugar não era reservado o bastante e sugeriu que sentássemos em uma mesa mais ao fundo. Durante a refeição, volta e meia sondava o ambiente, para ver se alguém o observava. Tinha o olhar preocupado. O servidor falou do desânimo de colegas que estavam em secretarias com a agenda parcialmente paralisada e do clima de intimidação que agora havia no ministério. Contou que consultava obsessivamente o Diário Oficial da União para acompanhar as nomeações e exonerações na pasta. Pediu para não ser mencionado na reportagem. Ao se despedir, recomendou que eu o contatasse apenas por meio de um aplicativo que apaga as mensagens após a leitura.
Os funcionários andam preocupados com o que compartilham e curtem nas redes sociais. Temem estar sendo monitorados pela equipe do ministro Ricardo Salles. Ouvi relatos de telefones grampeados, conversas de WhatsApp vazadas e olheiros infiltrados em reuniões de servidores. O clima de vigilância percebido por alguns foi reforçado por um ofício assinado no fim de março pelo chefe de gabinete do ministro, o coronel do Exército Antônio Roque Pedreira Junior. O documento determinava que equipes do ministério trabalhassem de persianas abertas, sob o pretexto de que a luminosidade seria “um dos pontos mais importantes no ambiente de trabalho”. “Dessa forma, garantiremos o bem-estar e produtividade de todos os servidores”, completava o ofício.
Num sábado de abril, Ricardo Salles visitou o Parque Nacional da Lagoa do Peixe, uma unidade de conservação no litoral sul gaúcho. Estava acompanhado do líder da bancada ruralista no Congresso, o deputado Alceu Moreira, do MDB-RS. Ao microfone, o ministro do Meio Ambiente quis saber se havia na plateia funcionários do ICMBio, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, responsável pela gestão daquela e de outras áreas protegidas. Como não havia nenhum, Salles determinou a abertura de um processo administrativo disciplinar contra os servidores. No entanto, eles não sabiam do evento, realizado fora do horário de trabalho. Salles “foi ardiloso, falacioso e grosseiro com os servidores”, nas palavras da Ascema, uma associação de funcionários da área. Depois do episódio, o presidente e três diretores do ICMBio pediram demissão de seus cargos.
Desde que assumiu o cargo, Salles agilizou a tramitação de antigos processos administrativos que culminaram na demissão de servidores; restringiu tanto a participação dos funcionários do ministério em eventos no exterior como os afastamentos para fazer cursos de pós-graduação; determinou ainda que sejam encaminhadas ao ministério demandas da imprensa dirigidas ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao ICMBio, duas autarquias vinculadas, mas não subordinadas à pasta – medida que foi recebida como uma mordaça. “O ministro fala mal da gente e não podemos nos manifestar”, me disse um fiscal do Ibama, que também pediu anonimato.
Entrevistei 58 pessoas para esta reportagem. Entre elas, 29 funcionários ou ex-funcionários do governo federal. A maioria preferiu não se identificar. O argumento, com pequenas variações, era sempre o mesmo: o medo de represálias. Um dos poucos que se dispôs a falar em on foi José Olímpio Augusto Morelli, o fiscal do Ibama que, em 2012, flagrou Jair Bolsonaro pescando numa área marinha protegida na baía de Angra dos Reis, no litoral fluminense. Bolsonaro, então deputado federal, não pagou a multa de 10 mil reais lavrada na ocasião; em vez disso, apresentou um projeto de lei que propunha desarmar os fiscais ambientais, embora defenda flexibilizar o porte de armas para a população. Em dezembro passado, o processo voltou à estaca zero no Ibama por recomendação da Advocacia-Geral da União, que entendeu que o acusado não teve direito à ampla defesa. No fim de março, Morelli foi exonerado do cargo de chefia que ocupava à frente do centro de operações aéreas do Ibama.
O servidor viu o gesto como uma retaliação. “Fui punido por ter feito minha obrigação”, ele me disse na ocasião. O presidente Bolsonaro manifestou recentemente a intenção de liberar por decreto a pesca submarina na estação ecológica na qual foi multado – pretende transformar numa “Cancún brasileira” a região que tem que abrigar por força de lei uma área de proteção ambiental, pois está no entorno de usinas nucleares.
Morelli é um engenheiro agrônomo mineiro de 56 anos que se especializou em direito ambiental. Entrou por concurso em 2002 no Ibama, o órgão que tem poder de polícia ambiental em âmbito federal. Semanas depois de sua saída, num encontro que tivemos em Brasília, ele me disse que o governo estava exonerando servidores que ocupavam cargos de diretoria e haviam sido nomeados por governos anteriores. “São técnicos que não têm vínculo político e vinham fazendo um bom trabalho”, afirmou. “Desde Sarney, todos os presidentes sempre puseram gente com capacidade técnica no Ibama, e com pouca interferência política.” Morelli entende que está em curso “uma tentativa de desmonte de uma experiência bem-sucedida de combate aos ilícitos ambientais no país, construída com erros e acertos”. Quando lhe perguntei se não tinha receio de se expor, o fiscal disse que vivia lendo a lei nº 8112/90, que regulamenta o serviço público federal, e que não via sua atitude como falta disciplinar. “Não falo em nome do Ibama e não ataco a minha instituição, faço comentários sobre políticas públicas implantadas por gestores.”
No fim de abril, foram excluídos do site do Ministério do Meio Ambiente dados sobre as áreas e as ações prioritárias para a conservação da biodiversidade no país. Preparados ao longo de mais de um ano por uma equipe técnica do ministério, os dados seriam usados para fundamentar o licenciamento de empreendimentos, a criação de unidades de conservação e a definição de ações e políticas públicas ambientais. Ricardo Salles alegou que as informações haviam sido retiradas momentaneamente do ar para a correção de erros, mas não disse quando voltariam a ser publicadas. Até o fechamento desta edição, seguiam fora do ar. Mas podem ser acessadas em alguns sites, graças à iniciativa de servidores que armazenaram as informações em HDs pessoais.
Gestos de resistência institucional também afloraram em outras esferas. Servidores vazaram para a imprensa documentos que antecipavam medidas planejadas pelo governo, como a minuta de um decreto que revê o sistema de multas ambientais ou o pedido para que o ministério anule uma portaria que proíbe a pesca de peixes ameaçados de extinção. As associações de funcionários da área ambiental se articulam para contestar medidas do governo na Justiça, e uma delas vai contratar uma agência de comunicação para produzir material de mobilização para as redes sociais. Encontrei um funcionário que disse se esforçar para tocar os projetos de sua secretaria sem usar expressões como “mudança do clima” ou “povos indígenas”, malvistas na nova gestão.
Em meio à guerra, ora aberta, ora velada, entre Salles e os funcionários de carreira ligados ao ministério, soou como um ato falho o erro tipográfico registrado no Diário Oficial da União no ato que nomeou pregoeiros oficiais para a superintendência do Ibama na Bahia. “Esta Porcaria entra em vigor na data de sua publicação”, determinou o ato. A porcaria era uma portaria, como foi corrigido depois.
Uma das promessas de campanha de Jair Bolsonaro era extinguir o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e entregar a gestão ambiental para uma secretaria do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A proposta subordinava os interesses da conservação ambiental aos da produção agropecuária e suscitou críticas não só de ambientalistas, mas de setores do agronegócio. O presidente recuou e manteve o MMA, mas confiou-o a um representante do ruralismo: Ricardo de Aquino Salles, um advogado paulistano de 44 anos, que
foi diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira e fundou o movimento Endireita Brasil.
Defendendo ideias liberais, Salles candidatou-se a vereador, deputado estadual e federal por São Paulo, mas nunca se elegeu (no ano passado obteve 36,6 mil votos disputando um lugar na Câmara dos Deputados pelo Partido Novo). Foi secretário particular do então governador Geraldo Alckmin e, por um ano, esteve à frente da Secretaria do Meio Ambiente do governo tucano em São Paulo. Com medidas que favoreciam produtores rurais, empresários e mineradores e restringiam o espaço das ONGs junto ao governo paulista, sua gestão em muitos aspectos ofereceu uma prévia do que faria em âmbito federal.
Salles foi o último ministro anunciado para o gabinete de Bolsonaro. (Dentre as especulações feitas na imprensa sobre os possíveis ministeriáveis para o Meio Ambiente, surgiu até o nome da atriz Maitê Proença.) Dez dias após a indicação, foi condenado por improbidade administrativa durante sua gestão como secretário do Meio Ambiente. O paulistano havia sido denunciado pelo Ministério Público por beneficiar empresas de mineração ao alterar os mapas e a minuta do decreto que definiam o zoneamento do plano de manejo da Várzea do Rio Tietê, uma área de proteção ambiental. Salles foi multado em 200 mil reais e teve os direitos políticos suspensos por três anos. Como a decisão foi em primeira instância, ele pode recorrer sem sofrer as consequências da pena.
m meados de maio, Edson Duarte, ministro do Meio Ambiente no final do mandato de Michel Temer, falou pela primeira vez em público sobre o período de transição entre a eleição e a posse de Bolsonaro. Contou que sua equipe elaborara um documento detalhado sobre o ministério e os órgãos a ele vinculados, incluindo informações estratégicas sobre os programas e parcerias em andamento. Segundo ele, a equipe que se preparava para entrar negou-se a visitar o ministério e desconsiderou o dossiê. “O material que preparamos ficou sobre a mesa. Não foram buscar”, afirmou Duarte numa entrevista coletiva. “Não houve transição, e isso é muito grave.”
A reforma na estrutura do governo federal promovida em 2 de janeiro esvaziou parte das atribuições que o MMA tinha até o ano passado. A Agência Nacional de Águas, antes vinculada à pasta, foi transferida para o Ministério do Desenvolvimento Regional; o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), responsável pela gestão das florestas públicas do país, agora responde ao Ministério da Agricultura. O SFB também é o gestor do Cadastro Ambiental Rural, uma base de dados sobre as propriedades rurais brasileiras e sua cobertura vegetal. Criado pelo Código Florestal de 2012, o cadastro permite verificar a adequação dessas propriedades à lei ambiental. A entrega do instrumento de fiscalização para um ministério comandado pelos grandes produtores foi criticada por ambientalistas. Para dirigir o Serviço Florestal Brasileiro, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, nomeou o ex-deputado federal Valdir Colatto, um ruralista do MDB catarinense. Em 2016, ele foi autor de um projeto para revogar a lei de crimes ambientais e liberar a caça no Brasil.
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