Em Kherson, esforço russo para mudar identidade ucraniana na ponta da bala foi tiro no pé
Processo de assimilação cultural defendido por Vladimir Putin não prosperou em nove meses de invasão, e afastou ainda mais Kherson da órbita de Moscou
Por Andrew Kramer, The New York Times — Kherson, Ucrânia 15/11/2022
A filha de Iryna Dyagileva foi a uma escola cujo currículo incluía a memorização do hino russo. Mas os professores ignoravam a norma, saudando os estudantes, de forma discreta, com um lema conhecido: “Glória à Ucrânia”.
Autoridades de ocupação pediram a Olha Malyarchuk, administradora de uma empresa de táxis, que pagasse as contas em rublos. Mas ela continuou a acertar suas dívidas na moeda ucraniana, a hryvnia.
— Simplesmente não funcionou — disse Malyarchuk, referindo-se à propaganda russa transmitida pela TV e colada nas ruas durante os nove meses de ocupação de Kherson, que no domingo caminhou no parque com uma pequena bandeira ucraniana.
Uma peça de propaganda proclamava, ao lado de uma rua, em letras garrafais, “estamos juntos com a Rússia!”. Mas um adolescente que deu apenas seu primeiro nome, Oleksandr, subiu no mastro de sustentação para rasgar o cartaz. Ao ser questionado sobre como se sentia, foi direto.
— Livre.
As forças ucranianas, apesar de todo poderio de seu vizinho que invadiu o país em fevereiro, retomaram centenas de vilarejos em três grandes contraofensivas ao Norte de Kiev, em Kharkiv, no Nordeste, e na região de Kherson, no Sul.
Mas é a cidade de Kherson que atrai as atenções. Ela era o ponto central da ambiciosa campanha russa para eliminar a identidade ucraniana — um objetivo que o presidente Vladimir Putin poderia ter aplicado a toda a Ucrânia caso suas forças tivessem tido melhor sorte no campo de batalhas, ao julgar por sua visão de que ucranianos e russos são uma só nação.
Em Kherson, canções nacionais foram banidas. Falar ucraniano poderia levar à prisão. Escolas adotaram currículos russos, e estudantes jovens ouviam que eram russos, não ucranianos. Nos primeiros dias após a liberação da cidade, ficou evidente que esses esforços foram em vão, ao menos entre os que ficaram ali conforme as forças ucranianas se aproximavam.
Serhiy Bloshko, trabalhador da construção civil, morou nas casas de amigos durante a ocupação, com medo de ser preso por ter participado de protestos contra a invasão, em março, logo depois da chegada dos militares russos. Os soldados chegaram a ir até a casa dele e, ao não o encontrarem, levaram sua TV e refrigerador.
Mas os russos encontraram alguns de seus amigos, que foram presos e desapareceram.
— Eles reprimiram a população pró-Ucrânia — disse Bloshko, entrevistado em uma fila de água no domingo. Sobre os esforços de assimilação cultural, disse que “o que aconteceu aqui foi uma limpeza étnica”.
A maneira como cada uma das forças entrou na cidade, uma em fevereiro, a outra na semana passada, já mostrava as diferenças, afirma.
— Quando nossos soldados entraram aqui, as metralhadoras estavam apontadas para o alto, no ar — declarou. — Quando os russos entraram, suas armas apontavam para as pessoas. Isso explica tudo. E eles diziam que eram nossos libertadores.
Troca de nomes
Ao redor da Ucrânia, a guerra foi um tempo de notável e acelerada separação entre os ucranianos e russos, exatamente o oposto do que queria Putin. Pessoas que falavam os dois idiomas antes da guerra agora só se comunicam em ucraniano. Escritores em Kiev sugeriram fechar um museu dedicado a Mikhail Bulgakov, nascido na cidade, mas que escrevia em russo. O prefeito de Odessa, a cidade no Mar Negro fundada por Catarina, A Grande, disse que sua estátua será derrubada.
O que começou há uma década, quando a Rússia apoiou forças separatistas no Leste da Ucrânia, como uma política de “descomunização” para banir nomes de locais e ruas da época da União Soviética, estendeu-se a referências culturais russas. Cidades estão, por exemplo, renomeando muitas das ruas que tinham o nome Pushkin, em homenagem ao poeta russo Alexander Pushkin.
Ao longo do fim de semana em Kherson, qualquer morador que tivesse qualquer visão positiva sobre os esforços de assimilação russa não demonstrava isso em público, algo nada surpreendente diante dos esforços para retirar a população civil pelos russos antes da chegada dos ucranianos. Muitas autoridades regionais colaboraram com os russos.
Três dias depois da saída das forças de ocupação, centenas de moradores de Kherson ainda celebravam na praça central. Mas as comemorações eram permeadas por estrondos de disparos de artilharia dentro ou nos arredores da cidade, uma vez que as tropas russas continuam na margem oposta do rio Dniéper.
Malyarchuk, a administradora do serviço de táxis, disse que, apesar dos fracassos do programa de assimilação, os invasores publicaram jornais e transmitiam um programa de notícias pró-Moscou. Na quinta-feira, durante a retirada, os soldados russos explodiram a torre de TV, e agora os moradores recebem o sinal de emissoras ucranianas.
Ela credita o sucesso do Exército ucraniano à estratégia de pacientemente debilitar as forças russas e de lançar ataques pontuais contra as linhas de suprimentos e posições russas dentro e nos arredores de Kherson por meses, ao mesmo tempo em que preservam a cidade. Essa abordagem, afirma, também manteve o apoio ao governo ucraniano.
Um ataque com um míssil de precisão Himars, disse, atingiu uma guarnição russa em um distrito residencial a cerca de 130 metros de sua casa, estourando as janelas, mas sem ferir civis.
— Foi uma explosão linda — afirmou, notando que a ajuda Ocidental ajudou a Ucrânia a repelir os russos de sua cidade. — Agradeço a Deus pelos EUA, Canadá e Reino Unido. Agradeço a Deus pelo “avô Biden”.
No centro da cidade, uma base russa perto de um hospital parecia destruída após um impacto direto de um míssil. Apenas restos das paredes estavam de pé, mas nenhum vidro do hospital foi danificado.
Dr. Ivan Terpak, um médico de família no hospital, disse que o ataque valeu o risco, e que era necessário para expulsar os russos.
— Eles não sairiam se não os atacássemos — disse. — Ninguém me perguntou, mas se tivessem perguntado, eu teria dito “vão em frente, deem o tiro”.
Iryna Rodavanova, curadora aposentada do Museu de Arte de Kherson, disse que a brutalidade dos soldados russos alienou os moradores, minando os esforços de assimilação cultural. Os soldados bateram em seu marido em uma estrada depois de o acusarem de ter cometido uma violação de trânsito.
— Concordo com nosso presidente — declarou. — Melhor sem eletricidade, água e aquecimento se também estivermos sem os russos.