Como ficou evidenciado pelas declarações de Putin e da alta cúpula de seu governo, a guerra da Ucrânia tem um significado muito mais amplo do que uma invasão convencional. Segundo a percepção de Moscou, a mera existência da Ucrânia como um território separado da Rússia é um ultraje, fato esse, que aliado com a crescente aproximação dessa nação com as potências ocidentais, tornaram a conquista do pequeno país banhado pelo Mar Negro em uma prioridade para os russos. Todavia, mais de seis meses após o início dessa guerra — a dura realidade de que uma vitória russa sobre a Ucrânia não ocorrerá a médio prazo — fez com que Moscou dividisse o seu foco, dando assim urgência para um tema que havia ficado relativamente escanteado nos últimos meses, a “russificação” dos territórios ucranianos ocupados. Isso ficou evidenciado pela convocação de referendos nas áreas controladas pelas forças armadas russas. Acontecimentos esses que levantaram algumas dúvidas, questionamentos esses que analisaremos com mais profundidade nesse texto.
Até o momento a maior parte é contra. Veículos de imprensa das mais variadas partes do mundo realizaram entrevistas por telefone nas últimas semanas com os moradores de cidades ucranianas ocupadas, tais como Kherson, com os relatos descrevendo que a um entusiasmo mínimo por um referendo e que atmosfera da cidade está nervosa e imprevisível, pois os moradores continuam incertos sobre o que os próximos meses podem trazer. “Você tem que lembrar que nunca houve qualquer conversa em Kherson sobre um referendo; ninguém pensava nisso antes da guerra. Agora será um referendo sob a mira de uma arma”, disse Kostyantyn, que trabalhou no setor de TI antes da ocupação. Opiniões essas que estão sendo endossadas até mesmo pelos cidadãos que se descrevem como amplamente apolíticos. “Eu não irei ao referendo, é claro. Não conheço ninguém que vá. Não sou uma pessoa política e não tenho opiniões fortes sobre política, mas está claro para mim que um referendo não é certo”, disse Svitlana, ex-funcionária de salão de beleza que agora vende alimentos na rua para sobreviver.
Com essas reações intempestivas e discordantes da população podendo ser entendidas pelos atos intimidatórios que as autoridades russas se valeram para esmagar a oposição pública ao seu governo de ocupação. Uma série de manifestações pró-Ucrânia que ocorreram em março e abril foram repelidas depois que soldados russos dispararam granadas de efeito moral contra a multidão e começaram a deter os organizadores em suas casas. No final de maio, a internet das cidades ocupadas foi redirecionada através de servidores russos, e toda a mídia local foi fechada ou recheada de conteúdo pró-Rússia. Fatos esses que modificaram profundamente o modo que o povo faz as suas reclamações sobre os russos, com elas se tornando cada vez mais sigilosas e reservadas, porém não menos raivosas. Fazendo com que os ruidosos comícios de protesto fossem substituídos por um movimento partidário clandestino de vingança contra seus algozes. Cartazes e panfletos são colocados sorrateiramente pelas cidades sob o manto da escuridão ameaçando de morte aqueles que colaboram com os ocupantes, enquanto outros cidadãos comuns ajudam as forças armadas ucranianas compartilhando informações sobre os russos, como por exemplo quais fábricas estão trabalhando com os ocupantes, como é a rotina das autoridades colaboracionistas, para onde as tropas russas estão se movimentando etc. Demonstrando de maneira clara e inequívoca o crescente sentimento anti-russo das pessoas que residem nos territórios ocupados.
Até agora, como estão transcorrendo as votações?
Um completo caos.
Serhiy Gaidai, governador de Luhansk, na Ucrânia, disse que na cidade de Starobilsk, a população foi proibida de sair e as pessoas foram forçadas a sair de casa para votar. Na cidade de Bilovodsk, um diretor da empresa disse aos funcionários que o voto era obrigatório e que qualquer pessoa que se recusasse a participar seria demitida e seus nomes divulgados aos serviços de segurança, acrescentou. Chamando o evento de “eleições sem eleições“, Gaidai disse que as pessoas estão sendo forçadas a preencher “pedaços de papel” sem privacidade em cozinhas e quintais, com cidades isoladas. “O humor dos russos é de pânico porque eles não estavam prontos para realizar tão rapidamente esse chamado referendo, não há apoio, não há pessoas suficientes”, disse Sobolevsky, de Kherson, no aplicativo de mensagens Telegram.
Quais são os reais interesses da Rússia por trás desses referendos?
O principal interesse é “legitimar” definitivamente a ocupação russa desses territórios. Tal como dito anteriormente, a população dessas regiões, diferentemente do que Moscou imaginava, está se opondo fortemente a todo e qualquer tipo de aproximação da Rússia. E como apontado em pesquisas realizadas pelos próprios russos, apenas 30% dos cidadãos que residem nesses locais veem como positiva uma anexação da Rússia. Para se ter uma ideia, as dificuldades estão sendo tão grandes, que os russos têm lutado para encontrar até mesmo funcionários ucranianos para preencher as fileiras de suas administrações de ocupação, principalmente neste momento de incerteza e de descontentamento das populações nas zonas ocupadas, com até mesmo os cidadãos pró-Rússia tendo profundo temor de se vincular formalmente as forças de ocupação. “Ninguém quer trabalhar para os russos. Eles sabem que é uma passagem só de ida para o inferno”, disse Kostyantyn, ex-funcionário de TI. Tais acontecimentos acenderam uma luz vermelha em Moscou, fazendo com que o fracassado plano original de instalar um governo fantoche pró-Rússia, visando manter a Ucrânia sob controle, mudasse radicalmente, se tornando agora uma corrida contra o tempo para anexar os territórios ocupados, diante do perigo cada vez mais real de que a resistência ucraniana ganhe ainda mais força e impossibilite a manutenção da ocupação russa no longo prazo. Com esse temor da Rússia deixando claro que, se necessário, a nação pode se valer de métodos poucos ortodoxos para fazer valer a seu desejo de anexar os territórios da Ucrânia, mesmo que isso seja diametralmente oposto ao desejo dos ucranianos. Entretanto, tal como dito por um famoso ditador soviético, “quem vota, e como vota, não conta nada; quem conta os votos é que realmente importa “.
Textos de apoio:
https://www.aljazeera.com/news/2022/8/1 ... -look-like
https://www.theguardian.com/world/2022/ ... dum-russia
https://www.reuters.com/world/europe/uk ... 022-09-19/
Fontes das imagens: theweek.com,
www.atlanticcouncil.org,
www.eleconomista.net e swarajyamag.com