Gorducho escreveu: ↑Qui, 22 Abril 2021 - 19:39 pm
Proponho formalmente ao Criso debatermos parágrafo-a-parágrafo o
Tratado.
E, claro! se necessário: frase-a-frase
Seria ótimo, Gorducho! Entretanto, um problema maior se alevanta:
não se averigua a veracidade de uma partitura debatendo as figuras, mas escutando suas notas musicais.
Um texto sobre moléculas e átomos não se valida por parágrafos e frases, mas por moléculas e átomos.
Não é o texto que dá realidade às moléculas e átomos - são eles que dão validade ao texto.
Não é a partitura que torna a música existente - é esta que confere sentido a aquela.
Do mesmo modo, o mundo espiritual não existe por causa de um texto religioso.
O texto religioso existe por causa da realidade espiritual transcendente.
O valor do texto procede do espírito, e nunca, jamais, o vice-versa.
Se fosse o contrário, a realidade transcendente dependeria de textos para existir,
e essa necessidade a faria deixar de ser, por definição, a realidade transcendente.
Um texto sobre cavalos marinhos é importante por causa dos cavalos marinhos.
Não são os cavalos marinhos que passam a importar a partir daquele texto.
Esse é um problema fundamental se ateus leem o
Tratado, a
Aurora ou até os Evangelhos:
como eles partem da nulidade da substância que confere essência a esses textos,
resta nada mais que um simulacro de cascas vazias e referências circulares.
Ou, pior do que isso: interpreta-se a coisa do modo mais material possível,
como se as figuras da partitura não representassem notas, mas fossem,
elas mesmas, desenhos, bolinhas, traços, ilustrações comparáveis.
Daí resultam aberrações, por exemplo,
Pedro Reis achando que Jesus ficou com raiva de uma figueira,
Fernando Silva achando que Jesus mandou trucidar os inimigos,
etc etc etc.
Não leem como se estivessem diante de um ensinamento espiritual.
E é óbvio que eles não tem como fazer isso, já que partem do não-espiritual.
E, dele partindo, disso se segue que qualquer ensinamento espiritual deixa de fazer referência,
uma vez que não mais há a coisa referida para associar, e passa a ser uma caricatura material e opaca.
Por isso, andam de mãos dadas os ateus e os crentelhos quando pensam, por exemplo,
que havia uma cobra falante num jardim, homem feito de barro, noé num barco etc etc etc.
Concebendo de uma forma limitada, o ateu termina por rejeitar sua própria concepção.
É como um daltônico que acusasse as roupas de o confundirem,
em vez de enxergar em si mesmo a raiz e origem de toda confusão.
Evangelhos não são notícias de jornal, são gêneros literários religiosos.
Aurora e Tratado não são relatos biográficos, são epifanias de insights místicos.
Outro exemplo: no
Bhagavad Gita, há um momento em que Arjuna,
empunhando armas, é incitado por Krishna a trucidar seus conhecidos.
Quem é místico, por partir do transcendente para o texto (e não o contrário),
entende que é um ensinamento sobre derrotar as ilusões da Multiplicidade,
para que permaneça o que é perene, a Unidade Transcendente.
Quem não é místico, ao ler o texto,
não encontra, em seu entendimento,
a referência para associar. Resta disso um texto caricato, grosseiro, vulgar,
e que resulta em uma concepção, um entendimento igualmente grosso e vulgar,
e então a pessoa rejeita sua própria concepção limitada, pensando
- "Que absurdo! Um Deus cruel e vingativo, mandando matar os outros" etc.
Ateus não estão acostumados com buscar o sentido em suas almas,
até por pressupor, como próprio ponto de partida, que não haja alma.
Logo, ler um ensinamento espiritual é algo que lhes é estranho:
é como uma Bússola apontando para uma direção fora do espaço,
e, não encontrando-a no espaço, parece a Bússola ser defeituosa.
Então ele joga a Bússola fora, pensando nela estar o problema.
A única solução seria ateus esquecerem tudo que pensam que sabem,
e começarem do zero, de novo, partindo do pressuposto da transcendência.
- "Ah, mas eu nunca vi nada de transcendente, não acredito nisso" etc.
Não interessa. Os textos acreditam. Acreditam e, acima de tudo, são sobre isso.
Se, desacreditando na Física, eu leio o texto de um físico e o julgo uma bobagem,
a referência para a compreensão deveria ser a minha ou a da qual o próprio texto parte?
Ora, quem escreveu é quem estava imbuído das ideias e essências que quis referenciar,
e como quem escreveu textos místicos foram os místicos, do misticismo se deve partir.
Por exemplo - para Philo, filósofo judeu de Alexandria,
a Árvore da Vida que Deus plantou no Centro do Éden,
é a Bondade plantada na humanidade, e os Quatro Rios que dela partem,
são as Quatro Virtudes Cardeais, por exemplo, Rio
'Pheison' deriva do grego
φείδομαι (abster-se),
representando a Prudência, e é dito no Gênesis que ele rodeia a "Terra onde há Ouro".
Mas um ateu, quando lê, ele pensa que é um curso de água mesmo,
que sai de um jardim mesmo, com uma árvore literal no meio,
e que também literalmente corre numa terra que tem ouro,
ouro mesmo, literal, elemento químico com 79 prótons.
Ele não entende que textos espirituais falam de coisas espirituais. Ele lê ao pé da letra.
Tentando entender através de coisas materiais, disso se segue a interpretação caricata,
e, para proteger a própria mente do absurdo, classifica-se a caricatura como mera ficção.
Resultado: textos sobre rios e jardins e árvores, mas que na verdade "era tudo só ficção".
Nós, místicos, lemos o Apocalipse, em que é dito que um dragão derrubou estrelas com sua cauda,
e compreendemos que fala do poder do Mal de arrastar os espíritos e subvertê-los com sua influência,
mas o ateu-materialista, ele lê achando que é literalmente um dragãozão, voando, derrubando estrelas.
E, quando você tenta alertá-lo que um texto religioso só pode ser lido religiosamente, ele acha que você que tá errado,
que na verdade o texto é sobre um dragão gigante que derruba estrelas, e que na verdade é um texto de ficção.
Quando Isaias 28:28 diz "É preciso moer o cereal para fazer pão", o ateu pensa que o versículo ensina a fazer pão.
Quando Eclesiastes diz "Todos os ribeiros vão para o mar, e, contudo, o mar não se enche", o ateu pensa em riachos.
Não compreendem o significado místico, de que as coisas impermanentes repetem e passam, e o perene não se esgota.
Destituído do sentido espiritual, os ensinamentos espirituais se tornam shows de bizarrices, atrocidades e viagens na maionese.
Quando Êxodo 3:2 diz "a sarça ardia no fogo, mas a sarça não se consumia", o ateu pensa que é um matagal imune às chamas.
Ele não compreende que a sarça que não se consome são os espíritos impassíveis que as paixões não conseguem devorar.
Quando o povo judeu, no deserto, sente "saudade das cebolas do Egito", o ateu pensa que sentiam falta de comer uma planta.
Ele não entende que as cebolas são a zona de conforto na escravidão, em vez da provação de atravessarem o deserto.
São Máximo, Confessor, disse:
"Abel, se tivesse se guardado e não tivesse saído ao encontro de Caim no campo,
ou seja, no espaço da contemplação natural, antes de obter a impassibilidade,
não veria levantar-se contra si a lei da carne, que é Caim e é chamada de Caim, e não teria sido morto,
enganado pelas mentiras dos vícios durante a contemplação dos seres antes de receber o estado perfeito".
Mas o ateu discutirá com os místicos, discutirá com o próprio santo,
dizendo que na verdade o texto é sobre um fratricídio pré-histórico.
Fico imaginando um ateu lendo a Teogonia de Hesíodo ou o Mahabharata dos indianos.
Não falo de você, Gorducho, de maneira alguma! Mas dessas discussões em geral no fórum.
Edit: estava lendo o Catecismo Ortodoxo do Frater Hilarion, e acabo de encontrar mais essa:
Eva "viu que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável" (Gn 3,6)
explica ele:
"ver" é a primeira manifestação do pensamento;
"agradável aos olhos" é a conversa com essa manifestação;
"desejável" é a aceitação interior do pensamento, tornando cativa a alma.
Conclui citando São Filareto:
"a disposição da alma ao pecado estabelece-se quando as faculdades da percepção se deixam cair em desordem."
Mas o ateu discutirá com o padre, o santo, os místicos e quem mais puder,
afirmando que é sobre comer mesmo um fruto mesmo de uma árvore mesmo.
Lástima.