fenrir escreveu: ↑Dom, 07 Março 2021 - 09:28 am
Ora, suponha que para esse teísta, a existência de deus esteja estabelecida nessas bases mais abstratas e simples.
Pergunto: como ele transpõe o abismo entre esse deus abstrato e aquele literal que ele crê?
O teísta em questão me passa a impressão de crer que se provou a existência de um, logo terá provado tambem a do outro
(evidentement são o mesmo deus para o teísta)!
Ótimos pontos.
Como garantir que a representação de Deus na cabeça do teísta toque o que Deus realmente É?
É simplesmente
impossível garantir isso. Partindo da criatura, a tendência é o erro.
É por isso que a experiência dos verdadeiramente místicos, dos que foram ao âmago,
não é descritiva, não é discursiva, mas sim quietude, profundidade, penetração, transcendência.
É aí que devemos entender Sidarta, quando diz que a verdadeira natureza de todas as coisas
transcende as distinções que fazemos entre início e fim, bem e mal, e todas as nossas discriminações.
É aí que devemos entender Lao-Tzu, quando diz que qualquer coisa que se diga,
qualquer coisa que possa ser dita, é uma limitação que não pode descrever o Tao.
É aí que devemos entender o Areopagita, quando diz que qualquer atributo imaginado por nós,
é ainda algo muito pequeno, muito limitado para descrever o Inefável, o Infinito.
É aí que devemos entender a Noite Escura da Alma de São João da Cruz,
cuja única coisa que pode revelar são as imperfeições e limitações da própria alma.
É aí que devemos entender os conselhos de Jacob Boehme, que chamou Deus de "Abismo",
e disse a seus discípulos que abandonassem qualquer conceito ou pensamento objetivo sobre.
É aí que devemos entender Shankara, quando diz que Brahman é a Existência Única
que dá fim à toda Multiplicidade, à toda Discriminação, à todo o universo aparentemente objetivo
de nomes e formas, seres e coisas, sendo uma realidade indivisa por trás das palavras.
É aí que podemos entender Tomás de Aquino, quando, após uma visão,
após sua verdadeira experiência mística, abandona a Suma Teológica e tudo que estava discorrendo.
É aí que podemos entender Mestre Eckhart, Bodhidharma, Nagarjuna, Plotino, eu poderia mencionar muitos outros.
É aí que entendemos os hesicastas da ortodoxia, que limitavam-se a repetir interiormente: "Tende piedade."
É aí que entendemos os querubins de Apocalipse 4, que se detém dizendo apenas "Santo, Santo, Santo".
O resto, apenas crê em um ídolo esculpido à própria imagem e semelhança humanas.
Creem numa projeção deles mesmos, com sua mesma moralidade e mesquinhez.
Fernando Silva escreveu: ↑Dom, 07 Março 2021 - 09:51 am
Explicar a origem dos nomes de entidades mitológicas as torna mais reais?
Não devemos falar em termos de real e irreal, mas de objetividade e subjetividade.
A sua identidade, os teus sentimentos, suas felicidades e sofrimentos não são objetivos, mas nem por isso menos reais.
Se uma pessoa nunca aprendeu o que é uma metáfora, e lê "amor é fogo que arde sem se ver" como se fosse objetivo,
pensará estar diante de um texto estúpido, rirá e o renegará, sendo que assim é somente por sua própria estupidez.
Fernando Silva escreveu: ↑Dom, 07 Março 2021 - 09:51 am
A serpente só passou a se arrastar no chão depois de castigada por Deus.
Sim. O que é o chão? É a terra.
Apocalipse 12:9 diz que "Ele e seus anjos foram lançados à terra".
Mas quem lê de modo estúpido, literal, caricato, pensará que o chão é literalmente o solo.
Apocalipse 12:4 diz que "sua cauda arrastou consigo um terço das estrelas do céu".
A leitura estúpida, literal, caricata, pensará que a cauda de um animal tragou astros do cosmo.
Que significa a 'cauda'? É a extensão de sua influência. Que são as 'estrelas'? São espíritos.
Estamos diante de um texto que é símbolo e alegoria do início ao fim,
mas as pessoas estúpidas leem de um modo estúpido e pensam estar no texto a estupidez.
Fernando Silva escreveu: ↑Dom, 07 Março 2021 - 09:51 am
É de se supor que antes tivesse patas.
Olha isso. Olha a tua conclusão.
"É de se supor que antes tivesse patas".
Inacreditável.
Outro exemplo: a serpente é condenada a comer pó.
Uma leitura estúpida, literal e caricata, pensará que ela se nutrirá de areia.
Sendo que o 'pó' é, do início ao fim da Bíblia, o símbolo da morte e corrupção.
Eclesiastes usa o 'pó' para falar da morte, da corruptibilidade de todas as coisas.
Em Gênesis, Deus diz que Adam retornará ao pó no sentido de que morrerá.
Logo, a serpente se 'alimenta' (espiritualmente, porque é um ser espiritual, e não material)
da corrupção, da destruição, da morte. Por isso ele é 'homicida desde o princípio' (João 8:44)
Fernando Silva escreveu: ↑Dom, 07 Março 2021 - 09:51 am
Por que trazer o conhecimento é corromper?
Deus trouxe as coisas até Adam para que as sujeitasse e definisse.
("dar o nome", no misticismo judaico, é atribuir a essência de algo).
O homem já estava conhecendo as coisas, já era um soberano sobre a terra.
A promessa da serpente foi "sereis como deuses". Uma pretensão demiúrgica.
O homem quis ser o centro, quis ser o topo, deixou-se seduzir pelo Orgulho.
Foi essa Vaidade, a ambição dessa pretensão, que corrompeu o coração.
Fernando Silva escreveu: ↑Dom, 07 Março 2021 - 09:51 am
Se fossem confiáveis, todos chegariam às mesmas conclusões.
As certezas aprisionam. Se houvesse uma interpretação fixa e objetiva,
não estaríamos diante de um livro espiritual, e sim de um relato histórico qualquer.
Aliás, nem relatos históricos são fixos e objetivos, hoje suas narrativas são discutidas também.
O propósito de uma 'escritura sagrada' é tocar a alma, é convidá-la à transcendência,
não é satisfazer-lhe o intelecto, descrever algo objetivo. Isso seria o inverso de misticismo.
Fernando Silva escreveu: ↑Dom, 07 Março 2021 - 09:51 am
O que impede alguem de interpretar simbolicamente a Edda dos nórdicos ou qualquer outra mitologia,
descartando literalismos e nonsenses e defender uma visão de mais "alto nível"
Ninguém impede, pelo contrário, isso é justamente o que deveria ser feito.
René Guenon, iniciado martinista, buscou na simbologia a conciliação das tradições.
Assim como Louis-Claude de Saint-Martin, patrono da Ordem Martinista, que disse que
como do espírito humano saíram as mitologias, no espírito humano seu significado deve ser procurado.
Para Saint-Martin, os cultos exteriores são formalizações e representações de verdades que não são materiais,
mas espirituais. Qual o valor de um batismo, de um casamento? De um ritual de iniciação?
Não está em sua objetividade, mas no que significa subjetivamente, para as almas.
Os antigos pagãos, gregos, romanos, egípcios, sabiam bem que seus deuses eram personificações de forças.
Até por isso, era muito natural o sincretismo. Hermes Trismegisto foi identificado como
o Hermes grego, o Mercúrio romano e o Thoth egípico. Os cultos se sobrepunham.
Mas o homem moderno, o homem do Séc. XXI, é estúpido e literal demais para isso.