A destruição do Segundo Templo que ocorreu durante a guerra Judaico-romana de 66-73 D.E.C, também causou um grande impacto no judaísmo. A destruição do sacerdócio templário tornou a centralização doutrinaria impossível, assim como os rituais com base no templo cessaram. Portanto cada rabino estava por conta própria. Cada um tinha sua própria resposta à ascensão do cristianismo e à diáspora ao qual o judaísmo foi forçado. Em certos lugares em determinadas épocas, várias associações rabínicas estabeleceram escolas locais e influenciaram movimentos a sua volta, mas no todo, o judaísmo se dividiu em facções distritais, cada uma lutando para manter a tradição da melhor maneira possível. No geral, a manutenção da identidade judia e as tradições culturais básicas foram possíveis, mas não a aderência rígida a um ponto de vista doutrinário único, já que não havia nenhuma autoridade central com a qual os grupos locais pudessem alinhar suas ideias. Portanto não é de admirar que quase tantas denominações judaicas originaram-se da diáspora quantas do Protestantismo, um milênio e meio depois.
O impacto da destruição do templo sobre os movimentos para Jesus levou-os a unir seus esforços num ativismo para reformar o judaísmo a fim de salvá-lo da romanização e da diáspora em andamento. Para a maioria dos Movimentos de ou para Jesus, não havia um esforço para reformar a religião tanto quanto a cultura, mas como veremos, para um deles, as coisas foram bem diferentes.
A Estrada para Damasco e as Origens do cristianismo
Aproximadamente 50 D.E.C a 140 D.E.C
Por volta de 50 D.E.C, um evento inusitado mudaria o curso da história da humanidade. Na Antioquia, o Movimento para Jesus sofreu uma metamorfose rápida e súbita, de um movimento social de reforma política para uma religião com todas suas características próprias. Enquanto isso ocorria, uma conversão inaudita aconteceu - ou talvez a transformação ocorreu porque Saulo de Tarso foi convertido e evangelizou o grupo na posição de Paulo o Apóstolo. Como isso aconteceu nunca saberemos ao certo. Mas estudiosos laicos concordam praticamente com unanimidade que este grupo incluía os primeiros verdadeiros cristãos e que Paulo foi um dos primeiros, se não o primeiro convertido. E o Movimento para Jesus da Antioquia tornou-se o primeiro dos que estudiosos de hoje chamam de cultos cristãos.
Seus escritos são os mais antigos que sobreviveram intactos. Datam de pelo menos duas décadas da suposta data da crucificação. Dos livros do Novo Testamento atribuídos a Paulo, há somente alguns que peritos concordam de um modo geral ser produto seu. Entre eles estão Gálatas I e II e Tessalonicenses I e II, Coríntios, Romanos, Filemón, Filipenses e possivelmente Colossenses. O resto dos livros do Novo Testamento que lhe são atribuídos foram escritos por autores posteriores buscando tirar proveito da sua fama e credibilidade.
O que é notável sobre estes escritos é que formam um quadro interessante sobre Paulo e os grupos que compunham o começo do cristianismo. Figuram entre as possibilidades apresentadas para justificar a ignorância de Paulo nesse início sobre muitos dos detalhes importantes da vida de Jesus ou talvez esses detalhes são mitos que foram incorporados pelo cristianismo depois de Paulo ter escrito essas cartas.
As razões para a conversão de Paulo merecem uma explanação aqui. Saulo, o judeu antes da conversão, era um homem que se odiava intensamente. Ele não nos conta os motivos do ódio, mas de vez em quando, se descreve como sendo um pecador muito além de qualquer redenção possível. Um homem condenado aos olhos de Deus. Um homem indubitavelmente destinado ao inferno, e não havia nada que ele mesmo pudesse fazer a esse respeito, principalmente porque seus próprios "membros" se recusavam a cooperar. Não é sua perseguição aos cristãos que gera o ódio a si mesmo, é justamente o contrário. Algo perturbava muito Paulo. E esse algo esta definitivamente ligado a seu comportamento pessoal porque ele se intitula um grande pecador.
No decorrer dos séculos, muitas sugestões foram apresentadas para explicar esse auto ódio. Poucas são realmente convincentes. Todas parecem ter problemas sérios - com exceção de uma: a sugestão que Paulo era um homossexual enrustido. O homossexualismo não era amplamente condenado nesta região na época, mesmo assim pode ter sido uma interpretação pessoal sua das proibições no Levítico que o levou a considerar-se um pecador por ser homossexual. Entretanto, quando ele passa pela sua conversão, percebe que pela graça de Deus, seu homossexualismo não importa mais, pois Deus ama todos igualmente. Digo isso depois de ter lido as referências no Novo Testamento nas quais Paulo fala de seu desamor e vergonha: suas palavras são profunda e surpreendentemente semelhantes às de outros homossexuais criados num ambiente cristão. Somente esta teoria explicaria todos os aspectos estranhos das atitudes de Paulo em relação à sexualidade - a tendência a um grau monástico de castidade, sua misoginia extrema (ver 1Coríntios 07:01, 07:27), o fato dele ter permanecido solteiro e ter incentivado outros a fazerem o mesmo, e as discussões frequentes sobre o fato dos membros do seu corpo não cooperarem com seus objetivos espirituais, e seu desespero por não conseguir efetuar as mudanças que gostaria. Todas essas evidências corroboram a teoria do homossexualismo reprimido de Paulo. As outras teorias não explicam nem a metade de suas idiossincrasias.
Tenho que admitir, entretanto, que não existe nenhuma evidência factual do homossexualismo de Paulo. A evidência é circunstancial, como a maioria das evidências aceita pela escolástica bíblica. Acusaram-me de ter incluído essa teoria porque ela incomoda os cristãos. Isto não é verdade. Eu a incluí porque, em primeiro lugar ela se encaixa com as provas mais que qualquer outra, e em segundo, porque os escritos de Paulo sobre esse assunto a corroboram mais ainda. Tudo realmente se encaixa. Faz sentido dentro do contexto. Pessoalmente, não me importo nem um pouco se Paulo era ou não homossexual; simplesmente tento achar uma teoria que melhor se encaixa com os fatos, e até o presente momento nenhuma se encaixa melhor. Se o leitor tiver uma melhor, estou mais que disposto a ouvi-lo. A busca pela verdade é a busca pelas evidências que mais se encaixam com os fatos e não as menos controversas, portanto se cristãos gostam ou não da teoria, ou se o autor é ou não gay, é totalmente irrelevante.
Se esta teoria for verdadeira, todo o alicerce do cristianismo se baseia no desamor ou auto ódio de um homossexual enrustido, incapaz de mudar a si próprio ou achar salvação autônoma, encontrando-a somente pela graça de Deus. Se essa teoria for verdadeira, tentem imaginar como a história do mundo teria sido diferente se Paulo não tivesse nascido gay nem passado pelo auto ódio resultante de sua condição natural de nascimento.
Paulo fala, então, a partir da perspectiva de um cristão padecendo de um desamor crônico. Isso antes de virar um mito. Ele prega as doutrinas que irão praticamente moldar o cristianismo nos séculos vindouros, mas nada fala sobre os milagres que certamente promoveriam a fé ou dos detalhes da vida de Jesus que um evangelista naturalmente usaria para converter. Ele não fez isso porque na verdade essas histórias ainda não existiam. Elas só surgiriam depois, quando os evangelhos foram escritos.
Os evangelhos: o processo mitológico se acentua.
65 D.E.C até cerca de 120 D.E.C
Os escritores dos evangelhos eram membros do novo culto cristão. Se foram convertidos por Paulo, não sabemos, mas já tinham se passado 20 anos desde a conversão do mesmo e a nova religião vinha se espalhando com rapidez epidêmica pelos movimentos para Jesus a leste do Mediterrâneo.
Não sabemos ao certo se Paulo realmente foi a Jerusalém conversar com Pedro sobre as doutrinas da igreja, e como deveriam ser seguidas tanto por judeus quanto por gentios. Só podemos especular a respeito dos detalhes que foram discutidos nessa reunião, mas uma coisa é certa: Pedro e Paulo discutiram feio. E o assunto da discussão foi para quem deveriam pregar: judeus e gentios ou só judeus. Ele voltou para a Antioquia certo que tinha convencido Pedro e Tiago do seu ponto de vista.
[N.D.T.: O rei Jaime exigiu que seu nome fosse incluído na Bíblia, portanto a Bíblia inglesa trocou o nome de Tiago para Jaime. Mantive o nome usado na Bíblia brasileira.]
É claro que houve várias reuniões (houve pelo menos mais uma em que Pedro foi humilhado por Paulo). Isso deve ter ocorrido entre os principais nomes do começo do cristianismo que delinearam como o proselitismo deveria ser realizado, como a igreja deveria ser estruturada, que doutrinas deveriam ser promulgadas para atrair o maior número de pessoas, e se deveriam incluir gentios. A razão para isso é que havia um problema sério: o judaísmo estava sendo ameaçado diretamente pela perseguição romana aos seus sacerdotes (considerados uma ameaça política por causa do levante contra o comando romano) e precisavam bolar uma nova versão do judaísmo que realmente atraísse as pessoas, e tão cativante que não quisessem abandoná-la, até mesmo diante da perseguição. Essa versão tinha que tirar a ênfase da adoração no templo já que não havia mais nenhum, e tinha que ser capaz de sobreviver ao assalto de ideias estrangeiras que a cercavam de todos os lados, de fontes romanas, helênicas e orientais. O resultado é que a nova religião tinha todas as características do que chamamos hoje de meme - uma ideia que se comporta exatamente como um vírus - ela infecta, se reproduz e se espalha, e tem a capacidade de evoluir e se adaptar a situações mutáveis.
Em resposta à perseguição romana por causa da revolta fracassada contra Roma, Paulo e outros fundadores do cristianismo deliberadamente criaram uma religião que se comportaria do modo descrito acima, para preservar pelo menos alguma forma de judaísmo diante das perseguições romanas mesmo sem um sacerdócio altamente organizado. Foram bem sucedidos, é claro, além de todas suas expectativas. Criaram uma seita que não somente sobreviveria às perseguições romanas e à diáspora, mas iria mais além, evoluiria e por fim se tornaria uma das principais religiões do mundo.
As ideias de Paulo, com contribuições de Pedro, Tiago (Jaime) e outros, inicialmente, ao que parece, se espalharam pelos Movimentos para Jesus locais que tinham se convertido. Entre eles, estavam os escritores dos evangelhos.
Os mitos da vida de Jesus foram emprestados das religiões pagãs que cercavam os escritores. Por toda parte havia religiões que tinham como características principais um ou mais dos mitos que vieram a ser associados a Jesus. Praticamente todas as histórias sobre Jesus: o nascimento imaculado, os milagres, a traição e a crucificação, faziam parte de uma ou mais religiões pagãs da época. Entre as religiões da época que incluíam o mito da crucificação estavam as religiões de mistério de Attis, Adonis, Dionísio, e outras. Dionísio, por exemplo, era representado com uma coroa de hera, vestido com um manto roxo, e teve que beber fel antes da crucificação. Uma pintura num vaso grego do quinto século A.E.C até mesmo mostra uma comunhão sendo preparada. O fato de que essas histórias hoje são associadas quase que exclusivamente ao mito de Jesus de Nazaré mostra como a história está sempre sendo reescrita pelos vitoriosos - a sua maneira.
Existem literalmente dúzias de evangelhos, a maioria perdidos, mas um número significativo sobreviveu, não somente os oficiais. A maioria dos evangelhos apócrifos são polêmicos e, portanto, desprezados com facilidade. Mas, pelo fato dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João serem tão importantes no desenvolvimento do cristianismo, vamos examiná-los um a um, assim como os efeitos que tiveram na igreja cristã.
O evangelho de Marcos
O primeiro evangelho escrito foi o de Marcos. Não sabemos muito sobre o autor, mas temos certeza de que era um homem simples, não muito conhecedor do grego (pode ter sido sua segunda língua), não muito culto, no entanto totalmente mergulhado na mitologia e religião judaica. Já que não era culto, seu mundo era cheio de superstições, demônios, possessões pelos mesmos, milagres e deuses do mundo romano, e tudo isso lhe afetou na escrita do evangelho. Também é óbvio que seu evangelho foi grandemente influenciado pelas histórias circulando na comunidade cristã sobre Jesus.
Marcos nunca disse que conheceu Jesus, se é que ele existiu mesmo. Ele se dizia seguidor de Pedro. Tanto que seu evangelho ficou conhecido por algum tempo como o evangelho Pedrino. Marcos escreveu seu evangelho na Síria (provavelmente no começo dos anos 70 A.E.C) para romanos cristãos. Eles estavam passando por uma intensa perseguição por parte de Nero, que os estava usando como bode expiatório pelo incêndio em Roma, e por outros problemas. Marcos então escreveu o que esperava ser um evangelho para fortalecer a comunidade cristã e lhe dar esperança nos momentos difíceis. E por isso ele escreveu um evangelho que enfatizava o sofrimento de Jesus e de seus seguidores e não a salvação terrena. Jesus tornou-se um mito como filho de carpinteiro e não como carpinteiro - uma tentativa óbvia de conferir-lhe status, ele não seria lembrado como um carpinteiro e sim como alguém que subiu acima de sua profissão de nascimento. José não é mencionado na história do nascimento de Jesus, mas ele se refere a Jesus como "filho de Maria", uma descrição geralmente reservada a filhos ilegítimos - portanto fica claro que Marcos tinha a intenção de ser honesto, mesmo que tivesse que recorrer a meias verdades para conseguir seu intento. Marcos não menciona as circunstâncias cercando o nascimento de Jesus, simplesmente conta que Jesus veio de Nazar'e9. Nada sobre virgens ou reis magos ou nascimento numa manjedoura com anjos conversando com pastores. Ele não cita isso porque esses mitos ainda não tinham sido incluídos na mitologia cristã. No entanto, muitos outros mitos da comunidade, incluindo várias histórias sobre milagres, foram incluídos por Marcos no seu evangelho. Isto aconteceu porque Marcos era um homem simples e costumava aceitar essas histórias sem questionar, principalmente porque exaltavam Jesus nas mentes dos leitores.
O evangelho de Mateus
O segundo evangelho a ser aceito foi o de Mateus. O autor de Mateus era um judeu conservador culto, conhecedor das nuances da tradição levítica, e estava determinado a mostrar ao mundo hebreu o que Jesus tinha a lhes oferecer. Ele o escreveu cerca de uma década depois da destruição do Segundo Templo após uma tentativa fracassada de levante judeu. Mateus se empenhou em explicar ao mundo judeu exatamente quem Jesus era e em mostrar ao judaísmo que havia uma alternativa a tradição rabínica que estava se desenvolvendo. E que a salvação através de Jesus era possível.
O conservadorismo de Mateus é a causa das constantes referências ao fogo do inferno e à condenação, feita por conservadores cristãos fundamentalistas. De fato, sem a inclusão de Mateus, haveria poucas referências bíblicas a isso. Mateus era dotado de um fogo e uma paixão que superavam suas qualificações como um entendedor da lei judaica. Ainda que ele fosse bem versado nessas leis, sua tentativa de ganhar sua causa citando-as mostrou-se, digamos, desastrosa.
Mateus usou como fonte primária o evangelho de Marcos. Ao fazer isso, muitos dos mitos de Marcos foram incorporados, e alguns dos seus foram adicionados, e a história foi alterada aqui e ali visando agradar leitores judeus. Por exemplo, para provar que Jesus era o Messias esperado, o elemento milagroso da história foi exagerado e os detalhes foram mudados a ponto de resultar em erros óbvios. Um exemplo é a genealogia com a qual começa sua narrativa: detalhes foram deliberadamente omitidos a fim de mostrar conjuntos de sete gerações de Abraão a Davi e de Davi até o exílio, e do exílio até Jesus. Por isso, alguns sugerem que Mateus não sabia contar muito bem, já que sua genealogia entra em conflito com outras genealogias do Antigo Testamento. Talvez ele estivesse ciente dessas discrepâncias, mas seu objetivo principal era deificar Jesus para uma plateia judia.
O evangelho de Lucas
O que Mateus fez para os judeus, Lucas fez para os gentios. Lucas, diferentemente de Mateus, era um estudioso consumado. Fluente em grego, na certa um gentio, ele sentiu a necessidade de escrever um evangelho que explicasse a nova religião para a comunidade gentia, e, portanto foi isso que ele fez. Como Mateus, ele estava de posse de uma cópia de Marcos e a usou bastante, citando longas passagens e adicionando o que lhe aprouvesse.
Antes de qualquer coisa, Lucas era um evangelista. Sua missão era transformar esse culto judaico numa religião relevante para os gentios, que não tinham a quem recorrer na sua busca para um código moral mais estrito pelo qual viver. O judaísmo exigia a circuncisão, uma desvantagem óbvia, e além do mais, era uma religião tribal cujos membros geralmente encaravam os gentios convertidos com ceticismo, quando não uma completa discriminação racial.
Com a ascensão de Domiciano ao trono Romano em 81 D.E.C, os incentivos a perseguição começaram novamente e Lucas se viu na necessidade de mitigar as preocupações romanas mostrando que o cristianismo era simplesmente um derivado natural e inofensivo da respeitada tradição judaica. Por isso dedicou o documento a "Sua excelência Teófilo."
Já que Lucas estava escrevendo para um público oficialmente romano cheio de possíveis conversões, muito cuidado foi tomado para retratar Roma da melhor maneira possível. Por exemplo, em Marcos, soldados romanos chicoteiam Jesus, mas em Lucas os soldados são de Herodes. O reino de Jesus "não é desse mundo", uma tentativa óbvia de acalmar as suspeitas romanas de que existia uma conspiração contra o estado. Há outros exemplos, que, como os acima, fazem com que esse evangelho conflite com os outros, já que Lucas tem o objetivo de agradar principalmente um público romano.
O evangelho de João
O último dos quatro evangelhos é, naturalmente, o de João. Ainda que seja o favorito dos literalistas, este evangelho, ironicamente, se apraz em zombar do literalismo. Os capítulos 3, 4, 6, e 8 contêm histórias que zombam dos mesmos. O evangelho de João é uma bela obra, feita por um verdadeiro erudito, profundamente religioso, que entendeu muito bem que o mito e o significado eram o cerne das escrituras, e não a literalidade das palavras. Não sabemos ao certo quem foi João, mas parece que pode ter sido um dos discípulos de um dos dois Joãos de Éfeso. Um era João Zebedeu, mencionado em Marcos, ou o filho do mesmo. João escreveu seu evangelho no começo do segundo século, quase um século depois dos acontecimentos.
João escreveu seu evangelho atento à ruptura crescente entre o judaísmo e o cristianismo e seu livro foi uma tentativa de unificar os dois. Ele tentou fazer isso criando uma mitologia acessível a ambos: citando a apreciada e respeitada literatura judaica liberalmente e incorporando uma mitologia de Jesus que visava mostrar que o mesmo cumpria as profecias e a lei judaica. Ao fazer isso, João criou um evangelho totalmente diferente dos que o precederam, tornando o atraente para os judeus que se sentiam desconfortáveis com as exigências da ortodoxia judaica resultante da destruição do Segundo Templo. A visão apocalíptica da narrativa tinha a intenção de apelar para o sentido judeu de destino e ao mesmo tempo permanecer fiel ao ideal cristão. Temos aqui uma visão profética num cenário cristão, completando assim a doutrina posterior do fundamentalismo cristão. O resultado, juntamente com o livro de Atos, também escrito por João, nos deu o conjunto completo de mitos que são essenciais para essa crença. Diferentemente de Marcos, no qual Jesus revela sua missão como o Messias só no final, em João, Jesus parece proclamar, "sou o cumprimento vivo da lei e dos profetas." Não só a mitologia como o público alvo eram bem diferentes dos anteriores. Por esse motivo, temos muitos conflitos tanto factuais quanto contextuais.
As grandes heresias do Gnosticismo e a revisão de Marcião
140 D.E.C a 312 D.E.C
O ecletismo filosófico da época, causado pela natureza cosmopolita do império romano, significava que em toda parte havia um filósofo ou pregador com ideias originais ou bem diferentes. Foi esse ecletismo, causado pelos gregos, e espalhado pelos romanos, que gerou os Movimentos Para Jesus e continuou com força total enquanto parte do Movimento Para Jesus se transformava em uma seita cristã. Desde a época de Paulo, as próprias seitas cristãs começaram a divergir profundamente, com novas ideias e heresias se espalhando como o vírus do resfriado no inverno, já que cada bispo local tinha suas próprias ideias e procurava levá-las a aceitação geral. Essa seita gerou novas seitas com a divulgação das heresias.
No final do primeiro século, os romanos, que buscavam um código moral que funcionasse para eles, começaram a buscar os Movimentos Para Jesus (que não paravam de sofrer modificações) e as seitas cristãs. O judaísmo ainda era atraente, mas requeria a circuncisão, uma desvantagem óbvia. Os cultos cristãos não exigiam isso. De fato, pertencer à seita cristã era muito agradável, rituais embaraçosos eram desnecessários e discussões corriam soltas na camaradagem amistosa do ritual da ceia (a fonte provável do mito da Última Ceia).
Em pouco tempo as seitas cristãs se espalharam por todo o litoral mediterrâneo. Elas ofereciam, com deliberação calculada, uma saída para os judeus da Diáspora, que não gostavam do judaísmo de Filo e seus predecessores helênicos, mas que estavam longe demais de Jerusalém para se envolver em estudos rabínicos, ou não se sentiam inclinados a aceitar a autoridade local. O culto cristão aceitava todos, sem se importar com origens étnicas, classe social ou naturalidade.
No entanto, qual culto seguir? Cada grupo local, sob a influência de seus bispos, havia criado suas próprias tradições e ideias doutrinárias. O cristianismo havia se tornado uma força apesar das tentativas romanas de refreá-lo; na Ásia Menor, as disputas entre várias seitas cristãs eram tão comuns quanto discutir futebol hoje.
No final do primeiro século, a confiança arrogante dos bispos locais em suas ideias autônomas estava prestes a ser esmagada. As divergências doutrinárias entre os grupos cristãos tinham se tornado grandes demais para serem ignoradas. Portanto, quando intelectuais desses movimentos começaram a aparecer, tornou-se óbvio que algo precisava ser feito. Finalmente Valentino da Alexandria, Justino da Samária, Irineu (da Ásia Menor, escrevendo de Lyon e um romano leal) Marcião de Sinope (uma pequena cidade da Ásia Menor), Clemente da Alexandria, e alguns outros convergiram em Roma em 140 D.E.C. Todos tinham uma ideia diferente do que constituía o cristianismo. Ideias que se contradiziam.
A igreja nunca mais seria a mesma.
Esses agitadores intelectuais jogaram de lado as ideias insípidas dos bispos locais e investigaram a base da igreja, e descobriram que o alicerce não era muito firme. E por isso, se puseram a renovar toda a base doutrinária da igreja.
Um dos problemas que Marcião detectou era o fato dos cristãos terem que ser leais ao deus judeu, embora não tivessem que cumprir suas leis. A visão de Deus de Marcião era a pregada por Paulo, que mais o influenciou. Deus era compassivo e misericordioso, um deus para toda a humanidade, que não pertencia a nenhum povo especifico, nenhum "povo escolhido".
O deus judeu, segundo Marcião, não merecia adoração. Ele deveria ser substituído por Cristo, que havia revelado a lei que os cristãos deveriam seguir, segundo as interpretações de Paulo. Ele era um deus de justiça e salvação, bem diferente do conceito judeu de Yahweh.
A essa altura, os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, assim como muitos outros já tinham aparecido há muito tempo, escritos pelos seguidores do culto, e Marcião trouxe consigo uma versão resumida de Lucas junto com dez cartas de Paulo formando o primeiro cânon do Novo Testamento. A primeira escritura cristã.
Os outros intelectuais não aceitaram as ideias de Marcião, principalmente porque ele rejeitava os mitos apostólicos completamente e porque trouxe à tona alguns problemas deixados pelos bispos. Mas ainda mais radical era sua rejeição absoluta dos escritos apostólicos iniciais onde ficava óbvio que ele não participava da visão corrente da missão de Jesus como salvador da humanidade. Um dos intelectuais, Policarpo, chamou Marcião de "o primogênito de Satanás" e outros, especialmente Tertuliano e Justino escreveram bastante se opondo as suas idéias.
Mas essa oposição de nada adiantou. Ele continuou a pregar por toda parte e obteve muito sucesso. Congregações marcionitas cristãs foram fundadas em Éfeso, Roma e Pontus na Ásia Menor. Vilas inteiras se converteram.
O apelo marcionita vinha do fato da doutrina ser simples, fácil de entender, mas principalmente, realizável. Ainda que tivesse uma parcela de contradições, o povão gostava, e os outros bispos percebiam isso.
Mais ou menos nessa época, um grupo estranhamente introspectivo do Movimento Para Jesus na Alexandria se envolveu com o misticismo judeu e o resultado foi um culto cristão chamado Gnosticismo (saber). Essa religião afirmava que Jesus era um mestre divino, mas rejeitava completamente a ressurreição e a doutrina da redenção. Quase tão mal quanto isso era a rejeição do mito apostólico e das doutrinas sobre a missão de Jesus de acordo com o cristianismo da época.
Ainda pior era a ideia que o divino era a fonte da amargura e vergonha. Mas o pior era a base do nome Gnosticismo: a ideia de que o conhecimento e a experiência pessoais eram a chave para entender a mensagem de Jesus. Ela tirava a autoridade dos bispos locais.
O Gnosticismo se apossou do Egito, e começou a se espalhar para outras províncias romanas. Os bispos ficaram horrorizados.
No começo do quarto século, os bispos locais não podiam mais confiar nas suas doutrinas insípidas, e, percebendo a ameaça do Gnosticismo, começaram a discutir uns com os outros sobre as doutrinas. Os bispos dos segmentos principais, com sede em Roma, Constantinopla, Antioquia, Cesaréia, Jerusalém, Alexandria e Cartago continuaram suas brigas incessantes.
A tentativa da conferência romana de lidar com o problema um século e meio antes, tinha se mostrado um fracasso completo. Pior ainda, ela tinha gerado o desenvolvimento da igreja marcionita, um movimento considerado herético de um modo geral, com enorme apelo popular.
E agora, ainda por cima, vislumbravam o câncer herético do Gnosticismo se espalhando com rapidez alucinante. Havia um turbilhão doutrinal tão acentuado e intratável dentro da igreja que parecia que ela estava condenada. E com a perseguição romana incessante, como poderia sobreviver?
Um Salvador inesperado livra a Igreja - E dá inicio à maior das revisões até aquele momento
313 D.E.C até cerca de 430 D.E.C
Em 313, o imperador Constantino e seu co-imperador Lucínio circularam uma série de cartas floreadas a seus governadores, nas quais disseram que seria "salutar e apropriado" que "completa tolerância" fosse outorgada a qualquer um que "tenha entrega sua mente ao culto cristão" ou qualquer outro culto que "a pessoa se sinta bem seguindo". O Edito de Milão, assim foi chamada essa série de cartas, teve o efeito de legalizar o cristianismo por todo o Império Romano. A pergunta que a História nunca respondeu apropriadamente é por quê o Edito de Milão foi promulgado de fato. Suspeita-se que foi provavelmente devido ao crescente poder político dos vários segmentos cristãos.
O Imperador Constantino era um homem profundamente supersticioso, mas também um político de primeira. Ele seguia várias religiões, tentando se salvaguardar, até mesmo depois de sua "conversão", e era extremamente arbitrário e impulsivo. Ele entregou prisioneiros de guerra aos leões, cometeu atos de genocídio em massa nas suas campanhas na África do Norte, e era famoso pelo seu comportamento insuportável, egoísta, impiedoso e de falsa moral. Seu sobrinho Juliano dizia que sua aparência era estranha, usava roupas engomadas à moda oriental, joias nos braços complementadas por uma tiara em cima de uma peruca pintada. Constantino aparentemente considerava o cristianismo simplesmente mais um dos cultos ou seitas de seu reino, e ele parecia ser membro de todas indiferentemente, sem se aprofundar em nenhum. Ele só foi batizado quando estava à beira da morte.
O Imperador Constantino, apesar de toda sua esquisitice, era realmente um ótimo político. Ele entendeu muito bem o fato dos cristãos estarem se tornando tão numerosos a ponto de representar uma ameaça política considerável se saíssem da confusão e se organizassem como um todo.
Prevendo isso, ele convenientemente inventou um milagre para sua conversão a fim de se tornar aliado dos mesmos. Em 312, um ano antes do Edito de Milão, ele travou a batalha da Ponte de Milyan, contra um rival ao trono. Havia muitos cristãos entre seus soldados já com o cristograma nas suas espadas e escudos. Pelas histórias, os céus se abriram e o imperador teve uma "visão" e lhe foi concedida a vitória na batalha. Pelo menos essa é a história que apologistas cristãos contam.
Infelizmente não sabemos ao certo o que aconteceu porque o querido imperador mudava sua história o tempo todo cada vez que a contava para alguém. Pelo menos seis versões contraditórias e diferentes sobreviveram contadas por pessoas que diziam tê-las ouvido do próprio imperador em pessoa. Enquanto contava essas histórias, ele aparentemente nunca abandonou o culto ao sol: o mitraismo, comum na Europa na época. Como monumento a sua vitória em Milyan, alguns anos mais tarde, ele levantou um arco do triunfo, que sobrevive até hoje. Nele consta um testemunho ao "Sol Invicto" (uma referência a Mitra) e outro a Jesus Cristo "guiando sua (do Sol) carruagem de uma ponta a outra do céu". Ele ordenou que os cristãos mudassem suas missas para o Dia do Sol (Domingo).
Constantino tornou-se o imperador único de Roma em 324, convocou o Conselho de Niceia no ano seguinte e deu uma ordem aos bispos cristãos: parem de brigar e cheguem a um acordo. Criem uma doutrina que seja universal (em outras palavras, católica), e que seja entendida e praticada por todos.
E é claro que os bispos obedeceram prontamente para não correr o risco de incorrer na malquerença do imperador. Reuniram-se em Niceia, discutiram, participaram de um concurso para ver quem gritava mais alto, estabeleceram algumas doutrinas em comum (principalmente sobre a criação e a natureza do universo, e a primeira versão do Credo Apostólico), disseram que tinham chegado a um acordo (só da boca para fora) e seguiram cada um para seu lado.
O imperador, que não entendia bulhufas dos pontos em discussão, tendo recebido a notícia que seus bispos tinham chegado a um acordo, ficou satisfeito. E os bispos ficaram satisfeitos ao ficarem sabendo que o imperador estava satisfeito. E continuaram a pregar as mesmas doutrinas que se contradiziam mutuamente como sempre.
Argumentações e dissensões continuaram nas próximas seis décadas, com varias facções agradando e desagradando o imperador em ocasiões diferentes. Atanásio, o verdadeiro autor da versão original do Credo Apostólico, só para se ter uma ideia, foi exilado e reabilitado pelo menos seis vezes. No final foi a política imperial e a fortuna da igreja romana, que ela dividia com congregações menores junto com instruções para seu uso, mais que a teologia, que finalmente determinaram a forma final que a doutrina cristã tomaria, já que vários bispos se viram, por várias vezes, sendo favorecidos ou não pelo imperador. Por volta de 430, o Conselho de Niceia tinha se tornado uma ocorrência comum, com o objetivo de eliminar heresias (ou seja, tudo que não agradasse ao imperador), e criar uma organização formal universal, i.e. católica, segundo o modelo da estrutura política do próprio império romano.
O Conselho de Niceia tornou-se, em essência, o órgão que promulgava as leis imperiais. Por essa razão, a Igreja Católica de hoje lembra o Império Romano daquele período na sua estrutura. A sede da Igreja acabou se estabelecendo em Roma e seu líder tornou-se conhecido como Papa. Novas basílicas se espalharam por toda a parte, todas construídas com a bênção do imperador e todas de acordo com diretrizes imperiais advindas da sede da Igreja em Roma. Constantino enviou expedições à Palestina a fim de "encontrar" e construir basílicas nos terrenos sagrados do começo da história da Igreja, e voltar com "relíquias" que promovessem a fé que, naturalmente, os expedicionários ficaram felizes em "adquirir", ou mais apropriadamente, criar. A sede da Igreja recentemente estabelecida em Roma começou a perseguir os gnósticos (crucificando muitos deles e jogando outros aos leões), e suprimindo a heresia marcionita.
Para popularizar a Igreja, a ênfase doutrinária foi alterada significativamente. Essas mudanças se refletiram na arte da igreja cristã. Quando cristãos romanos da época pré-Constantino se reuniam secretamente, a arte que produziam refletia a natureza pastoral dos ensinamentos de Jesus. Cenas de Jesus alimentando as multidões, abençoando crianças, e curando doentes eram os temas do período.
Depois da conversão de Constantino, o caráter da arte mudou súbita e drasticamente a fim de refletir a mudança na ênfase doutrinal. Foram-se as cenas doces e pastorais que retratavam um Jesus humilde pacientemente cuidando de seus seguidores. Ao invés disso, começaram a ser enfatizadas as imagens da crucificação e do chicoteamento de Jesus no tribunal de Pilatos. Isto era para ajudar as massas sofredoras a se identificar com aquele que supostamente tinha sofrido por eles. A igreja tornara-se um instrumento político - não se impacientem com o sofrimento causado pelo governo romano, pregavam ao povo, e terão uma vida futura melhor se acreditarem em Jesus, o Salvador. Pode ser que o imperador não consiga lhes dar uma boa vida agora, mas Jesus com certeza lhes dará.
Foi nesta época que o cristograma e o peixe, representando a natureza milagrosa da mensagem de Jesus (pelo menos da maneira que foi formulada pelos escritores dos evangelhos), foram substituídos pela cruz, na época um símbolo de morte e sofrimento, como principal emblema do cristianismo. A mensagem política do novo símbolo não podia ser mais clara. Junte-se a nós e seus sofrimentos serão aliviados por Cristo na próxima vida mesmo que o imperador não consiga nessa. Ou não se junte e vire-se sozinho, política e espiritualmente.
A criação da Bíblia como a conhecemos e mais uma outra revisão
320 D.E.C a 1330 D.E.C.
No meio de todo esse torvelinho intelectual, Constantino deu a Eusébio, o bispo da Cesareia (um porto romano na costa do moderno Israel), uma pequena incumbência. Junte algumas escrituras para o imperador apresentar às novas igrejas que estão sendo construídas na sua nova capital de Constantinopla antes do festival da ressurreição, a ser chamado de "Páscoa." 50 cópias, por favor.
Eusébio, um dos mais notáveis revisionistas históricos dos tempos antigos, obedeceu solicitamente. Não sabemos quais livros entre as centenas disponíveis foram apresentados ao imperador e nem o quanto foram revisados (já que muitos não são conhecidos antes de Eusébio), mas sabemos com certeza que ele percebeu que era questão de tempo antes que os "oráculos inspirados", como ele os chamava, tivessem que ser reunidos para que os cristãos estudassem em conjunto por todo o mundo algo na forma de uma biblioteca escritural, uma bíblia.
Também sabemos que Eusébio estava profundamente preocupado com as contradições que continham e o distúrbio político que resultaria se essas contradições se tornassem assunto de disputa pelo povo, ou, bem pior, na mente do imperador. Sabemos que Eusébio, de fato, fez algumas modificações nas obras que lhe interessavam, já que temos alguns textos anteriores aos seus para fazer comparações.
Como correlação e padronização era a ordem do dia (sob a tutela nada gentil do Conselho de Niceia), Eusébio podia ver claramente que um problema imperial era iminente, e estava determinado a resolvê-lo se pudesse.
Todos tinham sua lista de favoritos; as várias facções, com sede em Roma, Constantinopla, Antioquia, Cesareia, Jerusalém, Alexandria e Cartago tinham suas próprias ideias sobre o que era ou não escritura. E elas não chegavam a um acordo, apesar da mão pesada do Conselho de Niceia. No final, depois da separação do império romano, a compilação de Eusébio tornou-se a Bíblia padrão da igreja oriental.
Não sabemos ao certo como a tarefa de compilar e traduzir uma bíblia para a igreja romana ou ocidental coube ao Bispo Jerônimo da Dalmácia (340 a 420 D.E.C), algumas décadas depois, ainda que a política imperial na certa teve sua participação. Jerônimo era muito culto e tinha dedicado sua vida ao estudo e tradução de escrituras. Ele era um seguidor profundamente devoto da facção romana e o fato de que a igreja de Roma era rica e influente provavelmente teve algo a ver com a sua escolha. Afinal, Jerônimo tinha passado anos traduzindo escrituras para o latim e padronizando, para a igreja de Roma, a pedido de seu bispo, Damaso, o que hoje é conhecido por nós como textos do Novo Testamento. Podemos presumir pela politicagem presente nesse ponto que isso influenciou suas escolhas.
Melito de Sardis, um dos disputantes no infame Conselho de Roma de 140 D.E.C que havia criado a Igreja marcionita, havia compilado uma lista de escrituras hebraicas que, sabe-se, Jerônimo admirava muito. Entretanto o Bispo de Hipona, Agostinho, um homem extremamente irascível (o primeiro defensor da conversão e celibato forçados, entre outras coisas) interveio e convenceu Jerônimo a incluir obras da sua própria lista, similar a uma compilada por Atanásio, o autor do primeiro Credo Apostólico. Não conhecemos todas as intrigas que convenceram Jerônimo a concordar, mas algumas eram certamente políticas, e entre elas estava a incumbência imperial anterior de Eusébio. O Novo Testamento que Jerônimo escolheu entre as obras apresentadas foi baseado nos trabalhos que ele já tinha traduzido e padronizado para Damaso em Roma.
A compilação e tradução para o latim feita por Jerônimo ficou conhecida como Bíblia Vulgata (de língua popular). E ela se tornaria a Bíblia padrão da igreja católica romana até o século dezesseis. Ela ainda está disponível, publicada pela Igreja Católica em latim, e na Versão Douai, uma das numerosas traduções inglesas da Bíblia Vulgata a aparecer no século dezesseis.
A cortina caiu sobre essa fase. Séculos se passam enquanto o cristianismo se espalha por toda a Europa. E o assunto reabre novamente no oitavo século.
A Bíblia latina estava disponível por toda a parte, mas o latim, enquanto língua falada e entendida pelo povo do Império Romano, já tinha morrido. Sem ele, o acesso à Bíblia pelo homem comum tornou-se impossível, pois as Bíblias só eram disponíveis em latim apesar dos inúmeros idiomas do Império.
Esse fato aumentou ainda mais o poder do clero local e da hierarquia na igreja. Não somente tinham o poder político de Constantino como legado, mas também as chaves da igreja nas suas mãos, figurativa e literalmente. Eles adoraram essa situação porque podiam frequentemente cometer atos de crueldade e corrupção sem ser responsabilizados pela congregação supersticiosa e ignorante.
Entretanto, houve tentativas ocasionais de se levar pelo menos parte das escrituras até a massa ignorante.
As primeiras tentativas de se conseguir uma tradução em inglês arcaico foram feitas por Aldhelm, que em 709 publicou uma tradução anglo-saxônica dos Salmos, e o Venerável Beda, que, dizem, terminou uma tradução do Evangelho Segundo João quando estava moribundo, 26 anos mais tarde. Infelizmente, essa tradução não sobreviveu.
A Revisão Protestante e As Bíblias Inglesas
1330 a 1611
Nos séculos 13 e 14, traduções dos Salmos apareceram escritas por William Shoreham e Richard Rolle, em inglês médio. Essas traduções populares plantariam sementes que culminariam na luta para escapar da influência do clero e colocar a Bíblia nas mãos do povo.
John Wycliffe (1330-1384) ficou revoltado com a corrupção papal e suas exigências por dinheiro dos ingleses. Um verdadeiro homem do povo, ele decidiu que a melhor maneira de ridicularizar e desafiar o Papa era publicar a Bíblia em inglês. Quando estava moribundo, a tradução da Vulgata tinha sido feita e John Purvey, um colega íntimo, revisou-a completamente e a "corrigiu", com a intenção de publicá-la. Ela se tornou a primeira e única Bíblia inglesa até o século 16.
Em 1516, um monge com o nome de Erasmus, em Oxford, publicou a primeira tradução grega do Novo Testamento. A fonte da tradução, não sabemos, mas foi provavelmente a Vulgata.
William Tyndale decidiu traduzir para o inglês a Bíblia inteira, não a partir da Vulgata, mas do grego e hebreu. Isso tornou-se o trabalho da sua vida. Tyndale aprendeu grego com Erasmus. Seu estudo do Novo Testamento grego provavelmente influenciou suas obras posteriores.
A Igreja Católica se opunha a sua tradução da Bíblia para o inglês, por isso Tyndale teve que fugir para a Alemanha em 1524. Nos dois anos seguintes, sempre a um passo da perseguição papal, ele conseguiu terminar sua primeira tradução do Novo Testamento, que foi prontamente impressa e contrabandeada para a Inglaterra e devorada por um publico ávido.
Tyndale trabalhou anos nas suas traduções do Velho Testamento hebreu, e finalmente terminou em 1534 e revisou seu Novo Testamento em 1535. A igreja parecia menos oposta a essa obra que as outras, mas no final ele foi estrangulado e queimado na fogueira depois de anos de prisão em 1536. Dizem que suas últimas palavras foram, "Senhor, por favor abra os olhos do Rei da Inglaterra."
Miles Coverdale, um colega de Tyndale, foi o primeiro a publicar uma versão da Bíblia aprovada para a língua inglesa. Covardale não era um perito, mas baseou a maior parte do seu trabalho na Bíblia de Tyndale. Um dilúvio de traduções e revisões foi aparecendo. As mais notáveis foram a Bíblia de Rogers, de 1537, e a Bíblia de Taverner, em 1539.
O Rei Henrique VIII foi o primeiro monarca inglês a pedir que a Bíblia fosse colocada nas mãos do povo. A Bíblia escolhida foi A Grande Bíblia, uma obra editada por Coverdade (que não era nenhum perito).
Uma outra Bíblia foi a Bíblia da família. Chamada de a Bíblia de Genebra porque era produzida em massa de forma barata em Genebra, suíça. Ela era decididamente uma tradução tendenciosa que favorecia os pontos de vista do notório tirano religioso francês da cidade, João Calvino. Sua única virtude era ser barata, e, portanto o povo podia comprá-la. Ela era popularmente conhecida como a Bíblia da tanga por causa de Gênesis 03:07, onde Adão e Eva "tendo costurado folhas de figueira, fizeram tangas para si."
A versão do Rei Jaime
1604 até o presente
Em 1604, o Rei Jaime da Inglaterra organizou uma conferência em Hampton Court. 47 eruditos e clérigos foram convocados. O objetivo era a produção de uma bíblia que agradasse a todos - o clero, o rei e o homem comum. Uma meta ambiciosa, levando-se em consideração os pontos de vistas bem diferentes de todos e seus interesses políticos.
A versão do Rei Jaime foi lançada em 1611. Embora a capa dissesse que era uma nova tradução, na verdade não era. Ela era, ao invés, uma revisão da Bíblia de Bishop de 1602, que era uma revisão da Bíblia do Bispo de 1568, que era uma revisão da Grande Bíblia de Coverdale (não muito erudita), que foi na verdade reescrita usando-se as bíblias de Tyndale e Wycliffe que haviam sido traduzidas enquanto seus autores fugiam da perseguição.
Essa versão não ganhou popularidade imediata. Ela levou meio século para ultrapassar as bíblias anteriores, principalmente a Grande Bíblia da qual descendia, e a notória Bíblia de Genebra que a influenciou.
Mesmo assim ela manteve a bonita prosa inglesa das bíblias de Tyndale e Wycliffe e isso garantiu sua popularidade duradoura. A qualidade espetacular de sua prosa, e não a exatidão da tradução, é o que a fez durar. Examine as seguintes traduções da mesma passagem (Mateus 6:28-29) primeiro na versão do Rei Jaime, a popular "Bíblia das boas novas", e finalmente da que considero a melhor tradução do original grego, A tradução Richmond Lattimore.
• King Jaime Version of 1611: "Consider the lilies of the field how they grow; they do not toil, neither do they spin, yet I say unto you that even Solomon, in all his glory, was never arrayed like one of these."
• Good News Bible (American Bible Society, 1976): "And why worry about clothes? Look how the wild flowers grow, they do not work or make clothes for themselves. But I tell you that not even King Solomon, with all his wealth had not clothes as beautiful as one of these flowers."
• Richmond Lattimore Translation (Farrar Straus and Giroux, 1996): "And why do you take thought about clothing? Study the lilies of the field, how they grow. They do not toil or spin, yet I tell you, not even Solomon in all his glory was clothed like one of these."
Qual a tradução mais fiel? Os estudiosos terão que decidir, mas a beleza da linguagem da KJV e o poder de sua prosa nunca foram igualados na literatura inglesa. O poder da prosa de Tyndale e de Wycliffe foi tido, algumas vezes, como o melhor em toda a literatura inglesa.
Portanto essa é uma das principais razões pelas quais, apesar de todas suas falhas, a versão do Rei Jaime perdura. Sua linguagem soa como uma escritura. Ela realmente soa como algo que foi escrito por Deus. Como vimos, não levando a prosa em consideração, o legado da sua criação já seria suficiente para se questionar sua autoridade como escritura. Mas ela realmente soa bem!
Em que grau as traduções são objetivas?
A resposta é: não muito. A Bíblia de Genebra, que devido a sua popularidade influenciou grandemente o que temos hoje, foi uma grande manobra de marketing, promovida fortemente pelo tirano “religioso”, João Calvino. Outras bíblias, que também influenciaram o que chamamos hoje de escrituras, foram escritas para defender pontos de vistas bem específicos, exatamente como as traduções modernas estão sendo escritas com interesses bem definidos.
Finalmente encontrei uma tradução do Novo Testamento que é erudita, completa e objetiva. A Bíblia está em inglês e poderá ser comprada em
http://www.amazon.com/exec/obidos/ASIN/ ... arthsociet.
Eu a recomendo para qualquer um que leve a sério o verdadeiro significado das passagens. A tradução é de Richard Lattimore.
Um ponto de orgulho entre quase todos os teólogos cristãos é achar que, não importando a versão, a Bíblia é bem traduzida. Entretanto sabemos por experiência que os escritores dos documentos originais que se tornaram a fonte da Bíblia escolheram e revisaram materiais anteriores e, por sua vez, seus trabalhos foram também revisados inúmeras vezes. E depois que as traduções foram feitas, mais revisões aconteceram, e os revisores sempre tinham interesses políticos e religiosos em mente.
Bem, se as bíblias que os teólogos cristãos usam foram bem traduzidas, então os documentos originais continham erros. A Bíblia está repleta de erros e contradições, e nem todas são traduções mal feitas, deliberadas ou não. De fato, em resposta aos cristãos fundamentalistas que leem esse documento e o criticam dizendo que, apesar do processo descrito acima, a Bíblia é perfeita, escrevi uma analise de alguns dos erros mais gritantes da Bíblia e os coloquei aqui:
(
http://www.bidstrup.com/bible2.htm) (link não funciona mais)
Esses são alguns erros e contradições que simplesmente não tem como ser resolvidos, nem mesmo apelando para mágicas e milagres. São simplesmente impossibilidades. Como sempre, eu considero bem vindas todas as respostas dos fundamentalistas, e deixei espaço no documento para alternativas razoáveis e lógicas em contraposição as respostas dos laicos. Nota-se como recebi poucas respostas.
A Bíblia é de confiança como fonte de conselhos? Até que ponto?
Se não foi traduzida e editada apropriadamente, e está cheia de erros e contradições, em que grau a Bíblia pode ser considerada um guia?
A Bíblia padece de quatro problemas nesse ponto. Em primeiro lugar, não temos como saber o verdadeiro significado que os escritores originais queriam dar a seus textos porque os mesmos foram perdidos há muito tempo e o que sobrou foi escrito gerações após a morte de seus autores.
Esse problema tem sido o foco central desse ensaio e, a essa altura, deve ter se tornado claro que depois de milhares de revisões, traduções e editorações feitas por pelo menos 150 pessoas que produziram o que agora chamamos de Bíblia, que é impossível dizer que a Bíblia é isenta de erros.
O segundo problema da Bíblia é o conteúdo doutrinário contido na mesma. Como disse Shakespeare, a Bíblia pode ser usada para defender qualquer ideia. Se você quiser um deus irado, espalhafatoso, vingativo, destruindo todos que lhe servem de tropeço, exigindo genocídio, infanticídio e até mesmo escravidão, então o Êxodo é seu livro. Você quer um código de vida duro, rígido, inexorável, inflexível, sem misericórdia? Então seu livro é o Levítico. Quer um deus discreto, sutil, insondável que raramente interfere, mas que só pode ser conhecido através de orações sinceras e suplicas do fundo da alma, e que seja gentil e misericordioso? Leia as epistolas de Paulo. Tudo no mesmo livro.
O terceiro problema é que a Bíblia contém muitas contradições e erros, não somente de fatos óbvios, mas também de doutrina. Por isso, Shakespeare estava absolutamente certo ao afirmar o que afirmou.
Se você quiser justificar o ato de golpear cabeças de bebês até o cérebro cair fora da cabeça, a Bíblia é uma boa justificativa. Se você quiser justificar a sua oposição ao aborto, vai achar algo lá também. É óbvio que tudo é uma questão de interpretação pessoal e qualquer fundamentalista que diga o contrário não está lendo a Bíblia. Temos que interpretar a doutrina por nós mesmos porque a Bíblia é contraditória.
O quarto problema é a interpretação. A mesma passagem do mesmo livro da mesma tradução da Bíblia pode significar coisas inteiramente diferentes para pessoas de formação religiosa diferente.
Ela pode significar uma coisa para mórmons, outra para testemunhas de Jeová, outra para adventistas do Sétimo Dia etc. Quem está certo? Alguém está certo? Quem sabe? Quem pode resolver tais conflitos?
A Bíblia e o cristianismo no mundo moderno
Qual a relevância da Bíblia e do cristianismo no mundo moderno? É fácil notar, se se derem ao trabalho, que o cristianismo e a crença na Bíblia são mais bem sucedidos nas partes mais pobres do mundo, ou onde a educação é muito ruim ou pelo menos não melhorou o padrão de vida e forneceu um senso de compreensão ou amor próprio.
Nos EUA, o cristianismo sempre foi uma religião minoritária. Desde o seu ponto mais baixo na Revolução americana (19%) até o seu ponto atual (49%), ele é frequentemente citado como a fonte da civilização e cultura americana. Entretanto isso é uma contradição dos fatos, pois embora o número de convertidos esteja aumentando, principalmente por falta de eficiência no sistema de ensino público, a influência cultural do cristianismo cai a cada dia. As pessoas continuam a pensar por conta própria e é a variedade geral de ideias e valores que é responsável por essa tendência nos EUA.
Na Europa, palco de tantas perseguições e derramamento de sangue inspirados pelo cristianismo, a influência cristã caiu tanto a ponto de eruditos e estudiosos se referirem a época atual como “Pós Era Cristã”. Na maioria dos países da Europa, o comparecimento semanal às igrejas declinou tanto que as porcentagens são computadas com números de um digito: 1%, 4%, etc. Só na Rússia, padecendo do sucateamento da economia e do sistema educacional devido aos reajustes estruturais mal concebidos da transição do Comunismo, o cristianismo está fazendo progresso, juntamente com movimentos Nova Era e seitas baseadas nas filosofias e religiões do oriente.
As principais regiões onde o cristianismo está realmente ganhando terreno são as nações mais pobres do mundo no sul da Ásia e África, onde o transporte público e as comunicações mais modernas estão começando a reduzir os custos do trabalho evangélico missionário. Os vilarejos pobres da Índia e da África são os lugares onde o cristianismo está conseguindo se expandir mais. Onde os valores do século XIX perduram, o cristianismo prospera.
Conclusão
Basear uma religião em escrituras tão suspeitas quanto a Bíblia, e declarar que a mesma não contém erro algum e é de plena confiança é como construir um castelo de areia na praia.
Os estudos mais recentes mostram claramente que a história do cristianismo e da Bíblia que ele gerou são tão confusas a ponto de fazerem todos questionarem a condição de livro inspirado como também a validade da mensagem. Negar esse fato é o mesmo que negar a realidade.
Entretanto, muitos continuam a agir assim mesmo diante da evidência que não somente eles como a religião que defendem estão errados quando dizem que a origem do cristianismo é divina e imaculada em relação à ganância, politicagem e arrogância humanas.
A única coisa que pode ser dita é que fazer isso é demonstrar claramente uma enorme ignorância.
Como ficam então os grupos fundamentalistas que fazem exatamente isso, com insistência e alarde? Eles claramente acreditam no que acreditam não porque seja verdade e sim por outras razões menos fundamentadas.
Em ensaios relacionados, escrevi sobre os muitos erros básicos do fundamentalismo e a virulência do cristianismo como um complexo memético. Cristãos acreditam porque querem acreditar e não porque seja verdade, esse é seu erro básico. E isso é receita para a ignorância e não para a sabedoria.
O que escrevi nesse ensaio é um resumo de fatos autenticados. São fatos coletados não por aqueles que buscam apoio para uma teoria, como religiosos frequentemente fazem, e sim da forma como cientistas procedem: primeiro coletar evidências e só depois ver até onde elas levam e que teorias geram.
É o último processo descrito, uma dedicação à verdade, que possibilita o progresso humano. Isto acontece porque a humildade é a base de todo avanço intelectual, seja científico ou espiritual. A capacidade de admitir que está errado é o pré-requisito absoluto para conseguir entendimento. A presunção de que a resposta é revelada divinamente, e deve então ser comprovada buscando evidências, é a maneira que leva a civilização a um beco sem saída movido pelo egoísmo arrogante e a institucionalização do erro que impediu que a igreja católica admitisse por três séculos que Galileu estava certo quando disse que o Sol era o centro do sistema solar, ainda que a Igreja estivesse obviamente errada e todos sabiam disso.
Eu, portanto, peço aos fundamentalistas que lerem este ensaio que adotem o pré-requisito básico para desenvolver uma atitude que leve a uma aprendizagem e conhecimento verdadeiros—a humildade de ser capaz de admitir que está errado, examinar as evidências com base na qualidade e reconhecer que elas não comprovam suas pressuposições.
A Bíblia não é isenta de erros. Ela não é a palavra exclusiva e divina de Deus, e sim o produto de centenas de autores, editores e tradutores, muitos sem qualificações para o trabalho que executavam, muitos com objetivos conflitantes, cada um com interesses políticos ou religiosos a defender. A religião que você segue é em grande parte resultado de decretos de um imperador romano que pouco se importava com a religião a que estava dando forma. E o deus Jeová (ou Yahweh, na forma original) que você adora é descendente direto de divindades filisteias e babilônicas que suas escrituras agora difamam. Fingir que isso não é verdade é cometer o mesmo erro que a igreja católica cometeu em relação a Galileu. E você vai acabar passando por idiota exatamente como ela.
Fonte:
https://www.monografias.com/pt/docs/A-h ... 5L9UDH8LCP
Texto original por Scott Bidstrup
"The Bible And Christianity - The Historical Origins" by Scott Bidstrup
A rational, secular, historical perspective on the history of Christianity and its scripture
Original (não funciona mais):
http://www.bidstrup.com/bible.htm
Cópia do texto original:
https://reality101blog.blogspot.com/201 ... al_14.html