O texto introdutório apresenta alguns problemas da identidade pessoal. A idéia é desenvolver uma discussão da reencarnação diante desses problemas.
Boa leitura...
Créditos:
autor: Theodore Sider - Universidade de Rutgers
Tradução de Vítor Guerreiro
Retirado de Riddles of Existence, de de Earl Conee e Theodore Sider (Londres: Clarendon Press, 2005).
fonte: http://criticanarede.com/met_idpessoal.html
Dividi em 2 partes:
1ª Parte
O conceito de identidade pessoal
Ao ser julgado por homicídio, o leitor decide defender-se a si próprio. Afirma não ser o assassino; o assassino e o leitor são pessoas diferentes. O juiz pede-lhe que apresente provas. Tem fotografias de um intruso com bigode? Não é verdade que as suas impressões digitais correspondem às que foram encontradas na arma do crime? Pode provar que o assassino é esquerdino? "Não", responde o leitor. A sua defesa será muito diferente. Eis as suas alegações finais:
Como é óbvio, nenhum tribunal aceitaria este argumento. No entanto, o que tem de errado? Quando alguém sofre mudanças, física ou psicologicamente, não é verdade que "não é a mesma pessoa"?Admito que o assassino é dextro, como eu, que tem as mesmas impressões digitais que as minhas e que não usa barba nem bigode, como eu. Até se parece exactamente comigo nas fotografias da câmara de vigilância apresentadas pela defesa. Não, não tenho um irmão gémeo. Na verdade, admito lembrar-me de ter cometido o homicídio! Mas eu e o homicida não somos a mesma pessoa, uma vez que sofri mudanças. A banda de rock preferida dessa pessoa eram os Led Zeppelin; agora prefiro Todd Rundgren. Essa pessoa tinha apêndice, mas eu não; o meu foi removido na semana passada. Essa pessoa tinha de vinte e cinco anos de idade; eu tenho trinta. Eu e esse assassino de há cinco anos não somos a mesma pessoa. Portanto, não podem punir-me, pois ninguém é culpado de um crime cometido por outra pessoa.
Sim, mas a expressão "a mesma pessoa" é ambígua. Há dois sentidos em que podemos afirmar que duas pessoas são a mesma. Quando alguém se converte a uma religião ou rapa o cabelo, torna-se dissemelhante do que era antes. Digamos que, qualitativamente, não é mais a mesma pessoa. Então, em certo sentido, não é "a mesma pessoa". Mas noutro sentido é a mesma pessoa: ninguém o substituiu. Chama-se "identidade numérica" a este segundo género de identidade, uma vez que é o mesmo género de identidade denotado pelo sinal de igualdade em expressões matemáticas como "2 + 2 = 4": as expressões "2 + 2" e "4" representam o mesmo número. Numericamente, o leitor é a mesma pessoa que era em bebé, apesar de qualitativamente ser muito diferente. As alegações finais do julgamento confundem os dois géneros de identidade. Na verdade, o leitor mudou desde que o crime foi cometido: qualitativamente, não é a mesma pessoa. Mas, numericamente, o leitor e o assassino são a mesma pessoa; ninguém mais assassinou a vítima. É verdade que "ninguém pode ser punido pelos crimes de outrem". Mas aqui "outrem" significa alguém que é numericamente distinto do leitor.
O conceito de identidade numérica é importante para os assuntos humanos. Afecta a questão de saber quem podemos punir, uma vez que é injusto punir alguém que seja numericamente distinto do malfeitor. Também desempenha um papel crucial em emoções como a antecipação, o arrependimento e o remorso. O leitor não pode sentir pelos erros dos outros o mesmo género de arrependimento ou de remorso que sente pelos seus próprios erros. Não pode antecipar os prazeres de que outra pessoa terá experiência, por mais que essa pessoa seja semelhante a si em termos qualitativos. A questão sobre o que faz que as pessoas sejam numericamente idênticas ao longo do tempo é conhecida dos filósofos como a questão da identidade pessoal.
Pode-se representar a questão da identidade pessoal através de um exemplo. Imagine o leitor que está muito curioso acerca de como será o futuro. Um dia encontra Deus, particularmente bem-humorada; ela promete ressuscitá-lo quinhentos anos após a sua morte, para que o leitor tenha experiência do futuro. A princípio fica compreensivelmente entusiasmado, mas depois começa a duvidar. Como irá Deus garantir que será o leitor a existir no futuro? Daqui a quinhentos anos terá morrido e o seu corpo ter-se-á decomposto. A matéria que o compõe agora ter-se-á então dispersado pela superfície da terra. Deus poderia facilmente criar, a partir de nova matéria, uma nova pessoa que se assemelhe a si, mas isso não o conforta. O leitor quer ser o próprio a existir no futuro; alguém que seja meramente parecido consigo não serve.
Este exemplo torna o problema da identidade pessoal particularmente vívido, mas repare que a mudança trivial ao longo do tempo levanta as mesmas questões. Olhando para fotografias da infância, você diz "este era eu". Mas porquê? O que faz que o leitor e aquele bebé sejam a mesma pessoa, apesar de todas as mudanças que sofreu ao longo dos anos?
(Os filósofos reflectem também na identidade ao longo do tempo de objectos que não são pessoas; reflectem no que faz que um electrão, árvore, bicicleta ou nação sejam a mesma coisa em momentos distintos. Estes objectos levantam muitas das mesmas questões que se coloca acerca das pessoas, além de algumas questões novas. Mas as pessoas são particularmente fascinantes. Por um lado, apenas a identidade pessoal se liga a emoções como o remorso e a antecipação. Por outro lado, nós somos pessoas. É natural que nos interessemos particularmente por nós próprios.)
Então, como poderia Deus fazer o leitor existir no futuro? Como vimos, não basta reconstituir, a partir de outra matéria, uma pessoa fisicamente similar. Seria mera semelhança qualitativa. Adiantaria usar a mesma matéria? Deus poderia recolher todos os protões, neutrões e electrões que agora constituem o seu corpo, mas que estarão então dispersos na superfície da Terra, e transformá-los numa pessoa. Por via das dúvidas, Deus poderia até fazer que esta nova pessoa fosse parecida consigo. Mas não seria você. Seria uma nova pessoa criada a partir da sua velha matéria. Se não concorda, então pense no seguinte: esqueça o futuro; tanto quanto sabe, a matéria de que agora é composto o seu corpo foi, em tempos, parte do corpo de outra pessoa, há milhares de anos. É altamente improvável mas contudo possível que a matéria de um antigo estadista grego se tenha reciclado através da biosfera, vindo a acabar em si. É claro que isso não o tornaria numericamente idêntico àquele estadista. O leitor não deveria ser punido pelos crimes do dito; não poderia arrepender-se do que o outro tivesse feito. A identidade da matéria não é condição suficiente para a identidade pessoal.
Tão-pouco é necessária. Pelo menos, a exacta identidade da matéria não é necessária para a identidade pessoal. As pessoas sobrevivem constantemente a mudanças graduais na sua matéria. Ingerem e excretam, cortam o cabelo e perdem porções de pele, e por vezes fazem implantes de pele ou de outra matéria nos seus corpos. Na verdade, o processo normal de ingestão e excreção reciclam quase toda a matéria de que o leitor é feito, periodicamente ao longo dos anos. No entanto, o leitor continua a ser o leitor. A identidade pessoal não está especialmente ligada à identidade da matéria. Então com o que está ela ligada?
A alma
Alguns filósofos e pensadores religiosos respondem: a alma. A alma de uma pessoa é a sua essência psicológica, uma entidade infísica onde há pensamentos e emoções. A alma sobrevive ilesa a todo o género de transformações físicas do corpo e pode mesmo sobreviver à sua destruição total. A alma do leitor é o que o faz que o leitor seja quem é. O bebé nas fotos é o leitor porque a alma que agora habita o seu corpo é a mesma que habitava então o corpo daquele bebé. Deus pode então ressuscitá-lo no futuro fazendo um novo corpo e inserindo nele a sua alma.
As almas parecem dar resposta rápida a muitas perplexidades filosóficas acerca da identidade ao longo do tempo, mas não há qualquer boa razão para pensar que existem. Os filósofos costumavam argumentar que se tem de postular as almas para explicar os pensamentos e os sentimentos, visto que os pensamentos e os sentimentos não parecem fazer parte do corpo físico. Mas a ciência contemporânea destrói este argumento. Há muito que os seres humanos sabem que a vida mental está especialmente ligada a uma parte do corpo — o cérebro. Mesmo antes da neurociência contemporânea, sabia-se que as lesões cefálicas causam danos psicológicos. Sabemos agora como certas partes do cérebro estão associadas a certos efeitos psicológicos. Embora estejamos longe de poder correlacionar inteiramente estados psicológicos com estados cerebrais, progredimos o suficiente para saber que a existência de uma tal correlação é uma hipótese razoável. É razoável inferir que a própria vida mental está no cérebro, e que não existe alma. Não é que a ciência neurológica refute a alma: as almas podiam existir ainda que os estados psicológicos e os estados mentais estejam perfeitamente correlacionados. Mas se o cérebro físico explica por si a vida mental, não há necessidade de postular também almas.
Além disso, os teorizadores da alma têm dificuldade em explicar como as almas conseguem pensar. Os teorizadores do cérebro têm os rudimentos de uma explicação: o cérebro contém biliões de neurónios, cujas interacções incrivelmente complexas produzem o pensamento. Ninguém sabe ao certo como isto funciona, mas pelo menos os neurocientistas fizeram um bom começo. O teorizador da alma nada tem para dizer que se compare, uma vez que na sua maioria os teorizadores da alma pensam que a alma não tem partes menores. As almas não são compostas de biliões de minúsculas partículas anímicas. (Se o fossem, deixariam de fornecer respostas rápidas para as perplexidades filosóficas acerca da identidade ao longo do tempo. Os teorizadores da alma enfrentariam as mesmas questões filosóficas difíceis que os restantes de nós. Por exemplo: o que faz que uma alma seja a mesma ao longo do tempo, apesar das mudanças nas suas partículas anímicas?) Mas se as almas não têm minúsculas partículas anímicas, não têm algo semelhante a neurónios para as ajudar a fazer o que fazem. Como é que, então, fazem o que o fazem?
A continuidade espácio-temporal e o caso do príncipe e do sapateiro
Pondo de parte as almas, voltemo-nos agora para as teorias científicas, que fazem assentar a identidade pessoal em fenómenos naturais. Uma dessas teorias usa o conceito de continuidade espácio-temporal. Considere a identidade ao longo do tempo de um objecto inanimado, como uma bola de basebol. Um lançador agarra a bola e prepara o lançamento; momentos depois, há uma bola na luva do apanhador. Serão ambas a mesma bola? Como sabemos? É mais fácil se tivermos mantido os olhos na bola. Uma série contínua - uma série de posições no espaço e no tempo contendo uma bola de basebol, a primeira na mão do lançador, as localizações ulteriores nos espaços e momentos intermédios, e a posição final na luva do apanhador — convence-nos de que a bola do lançador e a bola do apanhador são a mesma. Se não observarmos essa série contínua podemos suspeitar que as bolas são diferentes. Normalmente, não precisamos deste método para identificar uma pessoa ao longo do tempo, uma vez que, na sua maioria, as pessoas diferem muito umas das outras, mas pode ser útil se lidarmos com gémeos verdadeiros. Quer saber se é o Zé Manel ou o Manel Zé quem está na cela? Primeiro, reúna informação a partir dos vídeos de vigilância ou de informadores. Depois, usando esta informação, esboce uma série contínua regredindo no tempo a partir da pessoa que está na cela e veja a qual dos gémeos conduz.
Todos concordam que a continuidade espácio-temporal é um bom indício prático da identidade pessoal. Mas enquanto filósofos queremos mais. Queremos descobrir a essência da identidade pessoal; queremos saber o que é ter identidade pessoal e não apenas reconhecê-la quando está presente. Se o leitor quiser saber se um certo homem é solteiro, é um bom indício prático verificar se ele tem o apartamento desarrumado; se quer saber se um certo metal é ouro, a inspecção visual e a pesagem numa balança darão a resposta certa nove vezes em cada dez. Mas ter o apartamento desarrumado não é a essência de ser solteiro, pois alguns solteiros são arrumados. Ter um certo peso e uma certa aparência não é a essência do ouro, pois é possível um metal aparentar ser ouro (em todas as suas características superficiais) sem que por isso seja realmente ouro (pense na pirite). A verdadeira essência de ser solteiro é ser um indivíduo não casado do sexo masculino; a verdadeira essência de ser ouro é ter o número atómico 79. Pois não há circunstância possível em que algo seja solteiro sem ser um homem não casado, e não há circunstância possível em que algo seja ouro sem ter o número atómico 79. Tudo o que exigimos dos indícios práticos para reconhecer solteiros ou ouro é que funcionem na maioria das vezes, mas as considerações filosóficas sobre a essência têm de funcionar em todas as circunstâncias possíveis. A teoria da continuidade espácio-temporal afirma que a continuidade espácio-temporal é de facto a essência da identidade pessoal e não apenas que é um bom indício prático. A identidade pessoal é, simplesmente, a continuidade espácio-temporal.
Tem de se aperfeiçoar um pouco a teoria para que possa funcionar em todas as circunstâncias possíveis. Suponha o leitor que é capturado, metido numa panela e transformado em sopa. Embora possamos traçar uma série contínua entre o leitor e a sopa, a sopa não é o leitor. Depois de liquefeito, o leitor deixa de existir; a matéria que antes o compunha compõe agora outra coisa qualquer. Assim, temos de aperfeiçoar a teoria da continuidade espácio-temporal até se obter a seguinte formulação: as pessoas são numericamente idênticas se, e só se, são espácio-temporalmente contínuas ao longo de uma série de pessoas. O leitor está certamente ligado à sopa por uma série contínua, mas os últimos elementos da série são porções de sopa e não pessoas.
São possíveis melhoramentos posteriores (entre os quais afirmar que qualquer mudança de matéria numa série contínua tem de ocorrer gradualmente, ou que os elementos anteriores de uma tal série são a causa dos elementos posteriores). Mas passemos antes a um exemplo muito interessante introduzido pelo filósofo britânico do séc. XVII, John Locke. Um príncipe interroga-se como seria viver como um humilde sapateiro. Reciprocamente, há um sapateiro que sonha com uma vida de príncipe. Um dia têm a sua oportunidade: permutam-se todas as características mentais do príncipe e do sapateiro. O corpo do sapateiro fica com a memória, o conhecimento e os atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram por sua vez para o corpo do sapateiro. O próprio Locke falou em almas: as almas do príncipe e do sapateiro permutam-se. Mas modifiquemos a sua história: suponha-se que a troca ocorre porque os cérebros do príncipe e do sapateiro são alterados por um cientista malévolo, sem qualquer transferência de almas ou de matéria. Embora seja implausível, não é de todo em todo inconcebível. A ciência diz-nos que os estados mentais dependem da configuração dos neurónios no cérebro. Essa configuração poderia em princípio ser alterada de modo a ficar exactamente igual à configuração de outro cérebro.
Depois da permuta, a pessoa que está no corpo do sapateiro lembrar-se-á de ter sido um príncipe e do desejo de experimentar a vida como sapateiro. Dirá para consigo: "Finalmente, tenho a minha oportunidade!" Reconhece-se como príncipe e não como sapateiro. A pessoa que está no corpo do príncipe reconhece-se como sapateiro e não como príncipe. Terão razão?
A teoria da continuidade espácio-temporal afirma que não têm razão. Os itinerários espácio-temporais contínuos atêm-se a corpos; vão do príncipe original à pessoa que está no corpo do príncipe e do sapateiro original até à pessoa que está no corpo do sapateiro. Então, se a teoria da continuidade espácio-temporal está correcta, a pessoa que está no corpo do sapateiro é de facto o sapateiro e não o príncipe e a pessoa que está no corpo do príncipe é de facto o príncipe e não o sapateiro.
Locke adopta uma perspectiva diferente; concorda com o príncipe e com o sapateiro. Se tem razão, então a sua experiência mental refuta a teoria da continuidade espácio-temporal. Eis um argumento poderoso da parte de Locke: Suponhamos que o príncipe cometeu um crime horrível, sabia que ia acontecer a troca mental e esperava usá-la para fugir à acusação. Depois da troca, o crime é descoberto e os guardas vêm buscar o culpado. Nada sabem da troca, pelo que prendem a pessoa que está no corpo do príncipe, ignorando os seus protestos de inocência. A pessoa que está no corpo do sapateiro (que se vê como príncipe) lembra-se de ter cometido o crime e gaba-se de ter escapado por um triz. Trata-se de uma enorme injustiça! O fanfarrão que está no corpo do sapateiro devia ser punido. Se é assim, então a pessoa que está no corpo do sapateiro é o príncipe e não o sapateiro, pois só se deve punir uma pessoa pelo que ela própria fez.