O Decreto em análise prevê que a graça “será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Isso é admitido? É possível que a graça seja concedida antes mesmo do trânsito em julgado?
SIM. É o que prevalece atualmente na jurisprudência.
No julgamento da ADI 5874/DF, em que estava sendo discutida a constitucionalidade do Decreto nº 9.246/2017, alguns Ministros, como Roberto Barroso, Edson Fachin e Cármen Lúcia votaram no sentido de que o indulto somente poderia ser concedido após o trânsito em julgado. Essa posição, contudo, não foi acompanhada pela maioria da Corte.
Prevaleceu o entendimento de que não há óbice para que o indulto seja concedido antes mesmo do trânsito em julgado. Confira trecho do voto do Min. Gilmar Mendes:
“Na doutrina, afirma-se: ‘verificamos a possibilidade de se receber o indulto antes do trânsito em julgado’ (RIBEIRO, Rodrigo. O indulto presidencial: origens, evolução e perspectivas. RBCCrim, v. 23, n. 117, nov./dez. 2015. p. 428). Ou seja, não há óbice para que o indulto seja aplicado antes do trânsito em julgado do processo. Ou seja, não há óbice para que o indulto seja aplicado antes do trânsito em julgado do processo.
Conforme já afirmado, a concessão do indulto é prerrogativa do Presidente da República que possui impactos no exercício da pretensão punitiva pelo Estado, podendo ter consequências em qualquer fase da persecução penal. Trata-se de mecanismo de gestão do sistema penal, com impactos em questões penitenciárias e de política criminal em sentido amplo. (...)
Daniel Silveira já está gozando dos benefícios da graça concedida ou ainda é necessária alguma outra providência?
É necessária ainda uma decisão judicial declarando extinta a pena (arts. 188 c/c 192 da Lei nº 7.210/84 – LEP).
Assim, a defesa de Daniel Silveira deverá requerer ao STF a extinção da punibilidade com base na graça concedida pelo Presidente da República.
Anistia, graça e indulto: semelhanças e diferenças
ANISTIA
GRAÇA
(ou indulto individual)
INDULTO
(ou indulto coletivo)
É um benefício concedido pelo Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República (art. 48, VIII, CF/88), por meio do qual se “perdoa” a prática de um fato criminoso.
Normalmente, incide sobre crimes políticos, mas também pode abranger outras espécies de delito.
Concedidos por Decreto do Presidente da República.
Apagam o efeito executório da condenação.
A atribuição para conceder pode ser delegada ao(s):
• Procurador Geral da República;
• Advogado Geral da União;
• Ministros de Estado.
É concedida por meio de uma lei federal ordinária.
Concedidos por meio de um Decreto.
Pode ser concedida:
• antes do trânsito em julgado (anistia própria);
• depois do trânsito em julgado (anistia imprópria).
Tradicionalmente, a doutrina afirma que tais benefícios só podem ser concedidos após o trânsito em julgado da condenação. Esse entendimento, no entanto, está cada dia mais superado, considerando que o indulto natalino, por exemplo, permite que seja concedido o benefício desde que tenha havido o trânsito em julgado para a acusação ou quando o MP recorreu, mas não para agravar a pena imposta (art. 5º, I e II, do Decreto 7.873/2012).
Classificação
a) Propriamente dita: quando concedida antes da condenação.
b) Impropriamente dita: quando concedida após a condenação.
a) Irrestrita: quando atinge indistintamente todos os autores do fato punível.
b) Restrita: quando exige condição pessoal do autor do fato punível. Ex.: exige primariedade.
a) Incondicionada: não se exige condição para a sua concessão.
b) Condicionada: exige-se condição para a sua concessão. Ex.: reparação do dano.
a) Comum: atinge crimes comuns.
b) Especial: atinge crimes políticos.
Classificação
a) Pleno: quando extingue totalmente a pena.
b) Parcial: quando somente diminui ou substitui a pena (comutação).
a) Incondicionado: quando não impõe qualquer condição.
b) Condicionado: quando impõe condição para sua concessão.
a) Restrito: exige condições pessoais do agente. Ex.: exige primariedade.
b) Irrestrito: quando não exige condições pessoais do agente.
Extingue os efeitos penais (principais e secundários) do crime.
Os efeitos de natureza civil permanecem íntegros.
Só extinguem o efeito principal do crime (a pena).
Os efeitos penais secundários e os efeitos de natureza civil permanecem íntegros.
O réu condenado que foi anistiado, se cometer novo crime, não será reincidente.
O réu condenado que foi beneficiado por graça ou indulto, se cometer novo crime, será reincidente.
É um benefício coletivo que, por referir-se somente a fatos, atinge apenas os que o cometeram.
É um benefício individual (com destinatário certo).
Depende de pedido do sentenciado ao juízo.
É um benefício coletivo (sem destinatário certo).
É concedido de ofício (não depende de provocação).
O STF poderá declarar a invalidade desse Decreto que concedeu graça a Daniel Silveira ou isso não seria possível por se tratar de um ato discricionário do Presidente da República?
Em 2017, na ADI 5874, o STF debateu acerca da a possibilidade de controle judicial sobre a concessão de indulto pelo Presidente da República. Vou explicar o que se decidiu naquela ocasião.
Em 21 de dezembro de 2017, o então Presidente Michel Temer editou o Decreto nº 9.246/2017, concedendo indulto.
A Procuradora-Geral da República ajuizou ADI contra o art. 1º, I, o art. 2º, § 1º, I, e os arts. 8º, 10 e 11 do deste Decreto.
Na ação, a PGR alegou que o Presidente extrapolou os limites da discricionariedade, violando o princípio da vedação da proteção insuficiente, tornando-se causa de impunidade. Ela apontou, ainda, violação ao “princípio da igualdade”, uma vez que o decreto beneficiaria “muito especialmente determinado grupo de condenados, notadamente aqueles que praticaram crimes contra o patrimônio público, sem qualquer razão humanitária que o justifique”.
Segundo ela, em casos graves, como o da Lava-Jato, em que foram aplicadas penas corporais e multas elevadas, as sanções financeiras seriam simplesmente perdoadas.
O STF concordou com os argumentos expostos? O pedido formulado na ação foi julgado procedente?
NÃO. O STF julgou improcedente o pedido formulado na ADI 5874 e declarou a constitucionalidade do Decreto nº 9.246/2017.
Veja abaixo um resumo do voto do Min. Alexandre de Moraes (relator para o acórdão).
Concessão de indulto não viola a separação dos Poderes
A Constituição Federal, visando evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais, previu a existência dos Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais, bem como criando mecanismos de controles recíprocos.
Esse mecanismo denomina-se teoria dos freios e contrapesos.
A prerrogativa de o Presidente da República conceder indulto é um mecanismo de aplicação da teoria dos freios e contrapesos, considerando que o chefe do Executivo irá intervir na aplicação e cumprimento de sanções penais.
Assim, não há que se falar em violação à separação dos Poderes, tendo em vista que a própria CF/88 prevê o indulto como forma de o Poder Executivo controlar a atuação do Poder Judiciário.
“O exercício do poder de indultar não fere a separação de poderes por supostamente esvaziar a política criminal estabelecida pelo legislador e aplicada pelo Judiciário, uma vez que foi previsto exatamente como mecanismo de freios e contrapesos a possibilitar um maior equilíbrio na Justiça Criminal” (Min. Alexandre de Moraes).
Natureza jurídica do indulto
O indulto é considerado um ato discricionário e privativo do Presidente da República.
Trata-se de uma tradição no Brasil prevista desde a Constituição de 1824.
A doutrina majoritária afirma que o chefe do Executivo fica livre para conceder o indulto para qualquer pessoa e qualquer infração penal, salvo as vedações impostas expressamente pela Constituição Federal.
Assim, o indulto não é passível de revisão judicial, salvo se descumprir algum dos requisitos impostos pelo texto constitucional.
Indulto não está relacionado com política criminal
O indulto não faz parte da doutrina penal, não é instrumento consentâneo à política criminal. Trata-se, como já explicado, de legítimo mecanismo de freios e contrapesos para coibir excessos e permitir maior equilíbrio na Justiça criminal.
O exercício do poder de indultar não fere a separação de Poderes por, supostamente, esvaziar a política criminal definida pelo legislador e aplicada pelo Judiciário. Está contido na cláusula de separação de Poderes. O ato de clemência privativo do presidente pode ser total, independentemente de parâmetros. Asseverou que, ainda que não se concorde com esse instituto, ele existe e é ato discricionário, trata-se de prerrogativa presidencial, portanto.
Controle jurisdicional do poder de conceder o indulto
O decreto de indulto não é imune ao controle jurisdicional, estando sob o império da Constituição. No entanto, as limitações à concessão do indulto estão previstas no art. 5º, XLIII, da CF/88:
Art. 5º (...)
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
Além da proibição de indulto para crimes hediondos e equiparados, a jurisprudência também entende, como limite implícito, que o Presidente da República não pode assinar indulto em favor de extraditando, uma vez que o objeto do instituto alcança apenas delitos sob a competência jurisdicional do Estado brasileiro.
Assim, apesar de o indulto ser ato discricionário e privativo do Chefe do Poder Executivo, a quem compete definir os requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade, não constitui ato imune ao absoluto respeito à Constituição Federal e é, excepcionalmente, passível de controle jurisdicional.
O Poder Judiciário tem o dever de analisar se as normas contidas no Decreto de Indulto, no exercício do caráter discricionário do Presidente da República, estão vinculadas ao império constitucional. Nada mais do que isso.
Se o Presidente da República editou o decreto dentro das hipóteses legais e legítimas, mesmo que não se concorde com ele, não se pode adentrar o mérito dessa concessão.
“O ato está vinculado aos ditames constitucionais, mas não pode o subjetivismo do chefe do Poder Executivo ser trocado pelo subjetivismo do Poder Judiciário”.
Se fosse admitida, por via judicial, a exclusão de certos crimes, como os de corrupção e os contra a Administração Pública, o Poder Judiciário atuaria como legislador positivo.
Limites razoáveis da discricionariedade
Nas palavras do Min. Alexandre de Moraes, o Poder Judiciário pode avaliar se a concessão do indulto extravasou os limites razoáveis da discricionariedade:
“Assim, apesar de o indulto ser ato discricionário e privativo do Chefe do Poder Executivo, a quem compete definir os requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade, não constitui ato imune ao absoluto respeito à Constituição Federal e é, excepcionalmente, passível de controle jurisdicional.
Esse exercício de hermenêutica, conforme tenho defendido academicamente ao comentar o artigo 5º, inciso XLIII, leva-nos à conclusão de que compete, privativamente, ao Presidente da República conceder indulto, desde que não haja proibição expressa ou implícita no próprio texto constitucional, como ocorre em relação aos crimes hediondos e assemelhados, para quem a própria Constituição Federal entendeu necessário o afastamento das espécies de clemencia principis (Constituição do Brasil Interpretada. 9. Ed. São Paulo: Atlas, 2003).
Portanto, em relação ao Decreto Presidencial de Indulto, será possível ao Poder Judiciário analisar somente a constitucionalidade da concessão da clemencia principis, e não o mérito, que deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do Presidente da República, que poderá, entre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquela que entender como a melhor para o interesse público no âmbito da Justiça Criminal (GEORGES VEDEL. Droit administratif. Paris: Presses Universitaires de France, 1973. p. 318; MIGUEL SEABRA FAGUNDES. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 131).
(...)
A análise da constitucionalidade do Decreto de Indulto deverá, igualmente, verificar a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão discricionária com os fatos. Se ausente a coerência, o indulto estará viciado por infringência ao ordenamento jurídico constitucional e, mais especificamente, ao princípio da proibição da arbitrariedade dos poderes públicos que impede o extravasamento dos limites razoáveis da discricionariedade, evitando que se converta em causa de decisões desprovidas de justificação fática e, consequentemente, arbitrárias (TOMAS-RAMON FERNÁNDEZ. Arbitrariedad y discrecionalidad. Madri: Civitas, 1991. p. 115).”
Não comprovação do desvio de finalidade
A PGR alegava que o Presidente da República agiu com desvio de finalidade ao editar esse Decreto.
O STF, contudo, entendeu que, apesar da insinuação (alegação), não houve comprovação de que existiu realmente desvio de finalidade no Decreto. Para o STF, se houvesse a efetiva demonstração do desvio de finalidade do Decreto, pela teoria dos motivos determinantes, o Judiciário poderia anulá-lo.
A ementa do julgado ficou assim redigida. O ponto mais relevante para o debate está destacado em cinza:
(...) 1. A Constituição Federal, visando, principalmente, a evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais.
2. Compete ao Presidente da República definir a concessão ou não do indulto, bem como seus requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade.
3. A concessão de indulto não está vinculada à política criminal estabelecida pelo legislativo, tampouco adstrita à jurisprudência formada pela aplicação da legislação penal, muito menos ao prévio parecer consultivo do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, sob pena de total esvaziamento do instituto, que configura tradicional mecanismo de freios e contrapesos na tripartição de poderes.
4. Possibilidade de o Poder Judiciário analisar somente a constitucionalidade da concessão da clementia principis, e não o mérito, que deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do Presidente da República, que poderá, entre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquela que entender como a melhor para o interesse público no âmbito da Justiça Criminal.
5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.
(ADI 5874, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-265 DIVULG 04-11-2020 PUBLIC 05-11-2020)
Essa conclusão exposta no item 4 do julgado poderá, em tese, ser invocada tanto para se negar como para se permitir a revisão judicial do Decreto no caso envolvendo Daniel Silveira:
• é possível se dizer que o STF não poderia invalidar o Decreto que concedeu graça a Daniel Silveira sob o argumento de que o Poder Judiciário somente pode analisar a constitucionalidade da concessão da graça. O Poder Judiciário não pode examinar o mérito do ato de concessão, considerando que este deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do Presidente da República.
• por outro lado, é possível que o STF invalide o Decreto argumentando que a graça concedida a Daniel Silveira não foi “moralmente admissível” por ter violado os princípios da moralidade e da impessoalidade (art. 37, da CF/88). Logo, neste caso concreto, o Presidente não teria feito uma hipótese moralmente admissível, admitindo o controle pelo Poder Judiciário. O STF argumentaria que a concessão da graça desatendeu as limitações implícitas contidas no art. 37 da CF/88 e que, portanto, seria inconstitucional. Provavelmente, este deve ser o caminho seguida pela Corte.
Márcio André Lopes Cavalcante
Compartilhar
‹
›
Página inicial
Ver versão para a web
VADE MECUM DE JURISPRUDÊNCIA
Vade Mecum de Jurisprudência
MAIS LIDAS
Análise jurídica do decreto de graça concedida pelo Presidente da República a Daniel Silveira
No post de hoje irei analisar, sob o ponto de vista estritamente jurídico, a situação do Deputado Federal Daniel Silveira (PSL/RJ) conde...
INFORMATIVO Comentado 1046 STF (completo e resumido)
Olá, amigos do Dizer o Direito, Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO. þ Baixar versão COMPLETA: þ Baixar versão RESU...
INFORMATIVO Comentado 728 STJ (completo e resumido)
Olá, amigos do Dizer o Direito, Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO. þ Baixar versão COMPLETA: þ Baixar versão RESU...
DIZER O DIREITO NO SEU E-MAIL
Receba novos posts por e-mail:
Insira seu email
Assinar
Powered byfollow.it
Política de Privacidade
© 2013 Dizer o Direito · Todos os direitos reservados