Moraes x Telegram – o método do ministro do STF
FMB News
11/05/2023
Artigo exclusivo em FMB News
Moraes x Telegram – o método do ministro do STF
I.
“O caráter lacônico das considerações do ministro [Alexandre de Moraes], desprovidas de um mínimo confronto direto com os respectivos trechos [da postagem], turbinam a percepção de arbitrariedade.
O enquadramento minucioso demanda tempo, mas, considerando até o tamanho da equipe de assessores jurídicos em gabinetes, alguma especificidade deveria constar em justificativas para a remoção urgente de publicações; senão, cristaliza-se o formato de reprodução de conteúdos e de alegações genéricas, que, não sendo necessariamente aplicáveis aos trechos, apenas camuflam decisões arbitrárias e atos de intimidação, baseados em critérios políticos e interesses outros que não a aplicação das leis.”
Descrevi esse método em 10/11/2022.
II.
A descrição também se aplica perfeitamente à decisão de Moraes contra o Telegram, que, tomada seis meses depois, em 10/5/2023, ilustra como o formato se cristalizou.
Segundo o ministro, “todo grupo social ou econômico” pode, “em uma democracia”, “procurar mecanismos – LEGAIS E MORALMENTE ACEITÁVEIS – para influenciar diretamente as instituições do Estado, ou indiretamente a opinião pública”, mas, “caso os mecanismos NÃO SEJAM LEGAIS E MORALMENTE ACEITÁVEIS, haverá grave desvirtuamento e caracterização de abuso de poder econômico”.
Moraes, então, simplesmente decreta que, “na presente hipótese, está caracterizada a utilização de mecanismos ILEGAIS e IMORAIS por parte do TELEGRAM”.
Onde? Em qual linha, frase, expressão? Por quê? Com base em qual lei? Como o conteúdo se enquadra no suposto dispositivo legal?
Ele não diz. Não detalha. Nem sequer espera resultado de apuração aberta pelo Ministério Público Federal, segundo o qual o texto “parece” ter sido encaminhado para todos os usuários do Telegram e não apenas os inscritos no canal de notificações.
O ministro apenas prossegue em suas alegações genéricas, sobre as quais as perguntas acima deveriam ter sido novamente respondidas, de modo que assinalo abaixo, com uma interrogação, cada ponto desprovido de justificativa específica:
“A mensagem enviada pelo TELEGRAM tipifica FLAGRANTE [?] e ILÍCITA [?] DESINFORMAÇÃO [?] atentatória [?] ao Congresso Nacional [?], ao Poder Judiciário [?], ao Estado de Direito [?] e a Democracia Brasileira [?], pois, fraudulentamente [?], distorceu [?] a discussão e os debates sobre a regulação dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, na tentativa de induzir e instigar todos os seus usuários à [sic] coagir [?] os parlamentares, como se nota, especialmente, nos seguintes trechos”.
Aqui, para quem não tinha consciência do método de Moraes, pode ter surgido uma esperança de que o ministro faria o esforço de decompor analiticamente os trechos seguintes; e para quem se deixa ludibriar pelo método, pode ter ficado a impressão de que ele fez isso. Mas não fez, claro. Simplesmente reproduziu, em 17 linhas, 8 frases de uma mensagem do Telegram, como se suas alegações genéricas se aplicassem a cada uma delas automaticamente, pela simples exposição de ambas; e como se, “diante do exposto”, ele estivesse então legitimado a determinar a “remoção/exclusão de todas as mensagens enviadas pela empresa”, como fez em seguida.
Considerando que ninguém precisa concordar com todos os pontos, nem com a forma, de uma crítica não criminosa, ou mesmo com as demais condutas dos responsáveis por ela, para que haja e se defenda no país a liberdade de expressá-la, eu, Felipe, reproduzo as 8 frases citadas na decisão e, ao contrário de Moraes, comento cada uma:
1) “A democracia está sob ataque no Brasil”.
Como pode ser um ataque à democracia dizer que ela está sob ataque?
Não pode, de modo algum. O regime democrático, além da separação dos Poderes e de suas respectivas atuações independentes, pressupõe uma série de fundamentos, princípios e liberdades, incluindo a de indivíduos e grupos de julgar cada um deles ameaçado, seja por um projeto de lei, como o PL 2630, seja por qualquer outra iniciativa, e manifestar sua preocupação, tomando o todo pela parte, ou vice-versa.
O que ninguém pode fazer é incitar ou perpetrar um golpe de Estado em alegada defesa da democracia – coisa que o Telegram não fez em momento algum da mensagem, que, muito pelo contrário, como se verá, apela justamente ao uso dos meios democráticos.
2) “Caso seja aprovado, empresas como o Telegram podem ter que deixar de prestar serviços no Brasil”.
Deixar de prestar serviços no país é uma potencial escolha voluntária da empresa, que tem liberdade de expressar essa possibilidade em caso de eventual aprovação de qualquer medida,
sobretudo uma regulação que lhe gere mais custos, riscos judiciais etc.
Analiso abaixo quatro frases em conjunto:
3) “Esse projeto de lei permite que o governo limite o que pode ser dito online”...
4) “Transfere Poderes Judiciais Aos Aplicativos”.
5) “O projeto de lei exige que as plataformas monitorem as comunicações e informem as autoridades policiais em caso de suspeita de que um crime tenha ocorrido ou possa ocorrer no futuro”.
6) “Isso cria um sistema de vigilância permanente, semelhante ao de países com regimes antidemocráticos”.
O que há de “ILEGAL” na frase 3? Nada, a não ser que as sínteses de casos complexos sejam criminalizadas. Moraes ainda omitiu a exemplificação subsequente do Telegram:
“...ao forçar os aplicativos a removerem proativamente fatos ou opiniões que ele considera ‘inaceitáveis’”.
Pelas regras atuais, uma rede só é obrigada a excluir um conteúdo em caso de decisão judicial. Em caso de aprovação do PL 2630, ela poderá ser responsabilizada civilmente pela circulação de “conteúdos ilegais gerados por terceiros, que possam configurar” crimes contra o Estado Democrático de Direito, atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo, crimes ligados a suicídio e automutilação, crimes contra crianças e adolescentes, crimes de racismo, violência contra a mulher e infração sanitária.
Todos esses crimes são deploráveis, obviamente, a questão é que decidir se um conteúdo específico incorre em qualquer um deles é uma atribuição do Poder Judiciário, sujeita a interpretações variadas, até mesmo nos tribunais, a depender do caso.
Se essa atribuição se torna impositiva para as plataformas (4), o Telegram é impelido a limitar o que pode ser dito online, por temor de ser responsabilizado por um órgão fiscalizador de viés governista, que tende a considerar inaceitáveis postagens entendidas pela empresa como legítimas, no âmbito da liberdade de expressão e de crítica.
Pelo PL, a princípio, a análise para sanções administrativas consideraria o “descumprimento sistemático”, mas as punições poderiam variar de multas a bloqueio, a depender da alegada gravidade da infração. Na prática, seria preciso cumprir sistematicamente as demandas potencialmente enviesadas do suposto órgão fiscalizador.
Seria, por exemplo, golpismo criticar um projeto de lei como este? Seria racismo criticar o sistema de cotas? Quantas vezes políticos e demais autoridades do campo do governo Lula já trataram como golpistas e racistas quem se opôs a suas bandeiras?
Pelo PL 2630, as plataformas devem produzir “relatórios semestrais de transparência” – cuja periodicidade pode ser reduzida em casos de “sistemático descumprimento dos ditames desta lei, de calamidade pública ou em período eleitoral” – para “informar procedimentos de moderação de conteúdo, nos termos da regulamentação”.
Ou seja: elas são, de fato, impelidas a moderar o conteúdo e prestar contas disso, sem que os critérios e as interpretações constituam uma ciência exata de consenso geral.
Como as redes também precisariam (5) informar as autoridades policiais em caso de “suspeitas de que ocorreu ou possa ocorrer um crime que envolva ameaça à vida” (nas palavras do próprio PL), elas têm manifestado preocupação em agir como “polícia da Internet”, criando, segundo a frase 6 do Telegram, “um sistema de vigilância permanente, semelhante ao de países com regimes antidemocráticos”.
Moraes, por acaso, não gostou da alegação de “semelhança” com autocracias? De novo: o ministro não precisa endossar uma analogia para saber que ela não afronta democracia alguma. Em regimes antidemocráticos, os cidadãos costumam ser vigiados o tempo todo; o Telegram teria de fazer algo similar em sua plataforma e está reclamando disso.
O Google, por exemplo, afirma que o modelo “traz sérias ameaças à liberdade de expressão” e que “as empresas seriam estimuladas a remover discursos legítimos, resultando em um bloqueio excessivo e uma nova forma de censura”.
Ninguém precisa sequer discordar inteiramente desses itens do projeto de lei para reconhecer que as empresas têm direito de se posicionar criticamente a respeito deles, já que são elas a arcar com os gastos e riscos de suas novas obrigações.
7) “O novo projeto de lei visa burlar essa estrutura legal, permitindo que uma única entidade administrativa regule o discurso sem supervisão judicial independente e prévia”.
Moraes omite uma frase anterior do Telegram, o que faz parecer que a rede social está acusando alguma burla indevida, mas se trata simplesmente da legislação atual, considerada suficiente neste caso: “O Brasil já possui leis para lidar com as atividades criminosas que esse projeto de lei pretende abranger (incluindo ataques à democracia).”
Por que diabos, então, a empresa não pode reclamar da “única entidade administrativa” que fiscalizaria o cumprimento das novas regras, se os próprios parlamentares de oposição reclamaram disso, levando a novas discussões sobre essa parte do texto?
Porque o ministro, aparentemente, não quer reclamações.
8) “Você pode falar com seu deputado aqui ou nas redes sociais hoje”.
Sim, Moraes destacou essa última frase, como se estimular cidadãos a falar com seus representantes no Congresso para defender uma posição sobre um projeto de lei fosse algo “imoral” ou “ilegal”. Mas até a Wikipédia sabe que não é:
“Democracia é um regime político em que os cidadãos no aspecto dos direitos políticos participam igualmente — diretamente ou através de representantes eleitos — na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governação através do sufrágio universal.”
III.
O Telegram pode ser alvo de punições por qualquer outra conduta que viole a lei, mas pelo conteúdo da mensagem que disparou, mais precisamente pelas 8 frases destacadas, aí não. O nome disso, que a claque lulista nas redações endossa, é censura, agravada, no caso, pela ordem de envio de uma mensagem de retratação ditada pelo próprio ministro.
Como escreveu seu então colega Celso de Mello, quando Moraes mandou remover reportagem da revista Crusoé, em 2019:
“A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República.”
Em outras palavras: ela não é legal, nem moralmente aceitável.
(FMB, 11/05/2023)