Meninas dadas em casamento aos 10 anos: filme mostra a realidade dessas crianças
"Nojoom: divorciada aos 10 anos" entra em cartaz no Brasil. Diretora sofreu o mesmo abuso e conta uma história exemplar
05/04/2017 - Por Luciana Medeiros e Juliana Pucheu
O cartaz do filme e a diretora, Khadija Al-Salami
Meninas obrigadas a se casar antes da puberdade são parte de uma dura realidade em alguns países, onde o enlace não tem idade mínima prevista em lei. No Iêmen, por exemplo, uma a cada três meninas casa antes dos 18 anos.
Mas Nojoom Ali veio para tentar mudar o destino de muitas jovens mundo afora. Primeira criança iemenita a obter o direito ao divórcio, ela lançou um livro em 2009 contando a sua saga. O best-seller, traduzido para 16 idiomas e vendido em mais de 35 países, virou filme pelas mãos da primeira diretora mulher iemenita, Khadija Al-Salami, que também viveu o trauma do casamento e do abuso infantil. Nojoom – Dez Anos e Divorciada chega aos cinemas brasileiros no dia 6 de abril com distribuição da Esfera Filmes.
O filme acompanha a história – real – da pequena Nojoom. Esposa aos 10 anos de idade, pede o divórcio de seu marido – um homem 20 anos mais velho que ela. O inédito pedido de divórcio e a igualmente inédita sentença favorável fazem de Nojoom um exemplo que ilustra muitas bandeiras contemporâneas da cidadania e dos direitos humanos – a luta contra a exploração da criança e do adolescente, contra a violência sexual e o feminismo, entre outros.
O papel título é defendido por Reham Mohamed. Conversamos com Khadija Al-Salami por email.
Você está denunciando uma situação extrema, um crime contra crianças. Até onde isso vai? Onde este crime é considerado parte da “vida cotidiana normal”?
Infelizmente, esse é um crime cometido pelos pais contra seus próprios filhos. Foi o que me impressionou quando eu era criança, ao ser sujeita a um casamento infantil. Eu, aliás, não considero aquilo um casamento: é um estupro com a benção da família e da sociedade. Como era muito nova, não entendia como minha família, que deveria me proteger, poderia permitir um destino tão horrível e devastador para mim.
E, infelizmente, essa prática é muito comum em países da Ásia, África e Oriente Médio. Quando estava exibindo meus filmes na Europa, descobri que isso também acontece em algumas famílias de imigrantes no Ocidente. Casamento infantil é uma violação dos direitos humanos, dos direitos da criança. E, apesar de proibido pelas leis internacionais, o casamento infantil continua roubando a infância de milhões de meninas ao redor do mundo.
Todo ano, 15 milhões de jovens se casam ainda crianças. Isso significa uma menina a cada dois segundos! Essa situação as obriga a parar de estudar e, assim, passam a viver uma vida sem perspectivas, com alto risco de violência, abuso, problemas de saúde e morte precoce. Se ninguém tomar uma providência quanto a isso, mais de 140 milhões de meninas vão se tornar noivas até 2020.
Essa é uma característica cultural que mostra como mulheres são tratadas em vários países. Acredito que seja possível ver resquícios dessas ideias nos países ocidentais. Você concorda?
Sim, essa prática é, na maioria das vezes, cultural. Em vários países, isso só acontece porque é uma tradição mantida há gerações. Em algumas comunidades, quando uma menina menstrua, ela se torna mulher; em outras, são consideradas “adultas” para efeitos da sexualidade até mesmo antes da menstruação. Portanto, o casamento é o próximo passo. Uma criança se torna esposa e mãe.
Além disso, meninas não são valorizadas como os meninos. Elas são vistas como um problema na família e criadas de forma inferior aos seus irmãos. O casamento da menina é entendido como uma forma de aliviar as despesas econômicas, transferindo os custos para o marido. Por isso, as famílias preservam a sexualidade e a virgindade de suas filhas para proteger sua honra.
Casamento infantil e arranjado já aconteceu em culturas ocidentais, como foi o caso de Maria Antonieta, que se casou aos 13 anos. Entretanto, com o progresso e a educação do Ocidente e a luta das mulheres ocidentais pelos seus direitos e igualdade, as coisas mudaram.
A atriz Reham Mohammed, que vive Nojoom aos 10 anos
Qual é o sentimento de expor essas histórias para o mundo? Quais são as reações?
Um dos propósitos pelo qual esse filme foi feito é o de educar as pessoas e conscientizá-las, para que a mudança ocorra. Devo admitir que fazer esse filme foi um pesadelo desde o começo até o final. Mas o que me motivou foi o fato de ser um tema muito importante e próximo a mim. Eu fiquei muito triste ao ouvir a história de Nojoom Ali, forçada a se casar no Iêmen quando tinha apenas 10 anos de idade. Assim como Nojoom, eu também passei por experiências dolorosas do casamento infantil. Desde então, dediquei minha vida a combater, através dos meus filmes, as condições insuportáveis que meninas e mulheres são forçadas a enfrentar .
A reação depende do país. No Ocidente e em alguns países árabes, a resposta foi muito positiva e incentivou as pessoas a se envolverem na causa e ajudar. Eu fiquei muito feliz ao ver que o filme já foi exibido em vários países e, particularmente, em várias cidades na Índia, onde isso acontece frequentemente. A reação lá também foi positiva. Espero que homens e mulheres que assistiram comecem a lutar por mudanças.
Nas comunidades árabes, depende do público. Aqueles que são contra as mudanças me acusam de retratar o Iêmen de forma errada. Lá e na
Arábia Saudita, um tema como esse é considerado um tabu.
Na Arábia, foi aprovado um fatwa (um tipo de lei) que permite que uma criança de 8 anos se case. Considerando que a Arábia tem muita influência sobre o Iêmen com sua ideologia extrema, foi arriscado e desafiador filmar lá. Nós poderíamos ter sido um alvo fácil para grupos extremistas como o Al-Qaeda. No entanto, quando você acredita no que está fazendo, nada pode parar sua ação e não há desculpas para não continuar seguindo seu coração por uma boa causa.
O que pode acabar com esse crime? Qual a posição da ONU sobre isso?
Acabar com esse crime requere ação em vários níveis:
Primeiro, países como o Iêmen deveriam adotar leis que proíbam o casamento infantil. Leis que já existem devem ser reforçadas, especialmente quando meninas em risco de casamento ou já casadas precisam de ajuda e de justiça. As famílias que quebrarem as regras devem ser punidas severamente. A idade legal para se casar deve ser aumentada para 18 anos
Segundo, o fator mais importante é educação na escola, e também através da TV, rádio e outras ferramentas de mídia, com o objetivo de conscientizar e promover a mudança. Quando uma menina tem educação, ela sabe quais são seus direitos, como defendê-los, como se proteger contra todos os tipos de abusos e ser útil a sua família e à sociedade.
Em terceiro lugar, o governo deveria lutar contra a pobreza e a manutenção de hábitos culturais opressores criados por homens.
A posição da ONU é importante enquanto parceira de governos e da sociedade civil. Eles devem trabalhar juntos para garantir que meninas tenham acesso à educação, informações sobre saúde e serviços e sobrevivência. No entanto, a ONU deve ser mais firme com governos que não tomam atitudes contra o casamento infantil. A proteção dos direitos humanos de meninas deveria ser prioridade e, assim, lutar contra a pobreza pelo desenvolvimento.
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