Mensagens mostram que ‘auditores’ do partido de Bolsonaro sabiam que não havia fraude nas urnas
Investigação mostrou que empresa contratada pelo PL constatou que não havia problemas no pleito, mas escreveu o inverso em relatório por anulação da eleição
Por Rafael Moraes Moura — Brasília 28/11/2024
O relatório da Polícia Federal que levou ao indiciamento de Jair Bolsonaro por abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa traz uma série de trocas de mensagens que mostram que a verificação conduzida pelo presidente do Instituto Voto Legal (IVL), o engenheiro Carlos Rocha, na verdade constatou que as urnas eletrônicas eram confiáveis, mas escreveu o inverso no relatório que baseou a representação do PL para anular o resultado das eleições presidenciais de 2022.
O IVL foi contratado pelo PL para auxiliar na fiscalização da apuração do pleito. Mas, logo depois da eleição, Rocha apresentou à legenda comandada por Valdemar Costa Neto um relatório afirmando que havia “inconsistências graves e insanáveis” nos modelos antigos de urnas do TSE. Foi com base nesse documento que Valdemar pediu ao tribunal em 22 de novembro de 2022 a anulação dos resultados de mais de 250 mil urnas anteriores a 2020. Rocha é um dos 37 indiciados pela PF.
Na opinião da PF, a ofensiva pela anulação da vitória de Lula marcou “o último ato” oficial do grupo que pretendia impedir a posse de Lula e serviu de fundamento “para a tentativa de golpe de Estado, que estava em curso”.
Pelas conversas captadas pela PF, os investigadores constataram que as hipóteses utilizadas por Carlos Rocha para lançar suspeitas infundadas sobre as urnas eram, na verdade, “teses de indícios de fraudes que circulavam pelas redes sociais, sem qualquer método científico”, fruto de um trabalho sem “rigor técnico”.
Segundo a PF, Rocha tentou validar tais suspeitas com o uso de dados de uma empresa de tecnologia da informação chamada Gaio, que tinha como sócio um técnico chamado Eder Balbino. Ele se apresenta nas redes sociais como um “entusiasta da análise de dados”.
Em uma dessas mensagens, de 2 de novembro, Carlos Rocha questiona Balbino se já há “algumas confirmações de correção ou indícios de manipulação” no resultado das eleições.
Balbino responde: “Infelizmente não. Tomamos a decisão de gastar um tempo inicial preparando a base para deixá-la bem mais fácil para encontrar indícios em múltiplas trilhas.”
No dia 5, Rocha pressiona Balbino de novo após uma reunião virtual. “Precisamos responder à pergunta, objetivamente, que se a eleição tivesse usado somente as urnas eletrônicas modelo 2020, o Bolsonaro teria vencido as eleições?”, pergunta, já antecipando a principal tese a ser defendida pelo PL na representação.
Balbino então tenta reproduzir em todas as urnas usadas nas eleições de 2022 os resultados encontrados nas de modelo de 2020. Ao todo, o TSE utilizou cerca de 600 mil urnas na ultima eleição presidencial. Mas o resultado é frustrante.
A simulação mostrava que Bolsonaro só ganhava quando a simulação convertia todo o país para urnas novas (o que não tinha acontecido) ou se convertessem para urnas novas as antigas que tinham sido usadas em cidades com até 100 mil eleitores. “Já com municípios abaixo de 50 mil eleitores ele não vence", diz Balbino.
Em 9 de novembro, Carlos Rocha encaminha para Balbino mensagens que havia recebido de um outro engenheiro, Tony Cavaliere de França, sobre a identificação do código de cada urna eletrônica, que permitiria auditar o resultado da eleição.
“Achei um fato novo aqui que aparentemente enfraquece a crença na fraude de urna velha vs. urna nova”, escreve o técnico na mensagem.
Em outra mensagem obtida pelos investigadores, Balbino diz a Rocha que enviou um e-mail com uma série de ressalvas ao relatório preliminar que seria apresentado pelo PL.
No documento, também obtido pela PF, Balbino aponta várias inconsistências na versão preliminar do relatório feito por Rocha e garante que é possível relacionar cada arquivo log de urna com o boletim de urna correspondente, já que o nome do arquivo tem um padrão onde estão o código do município e os números da zona e da seção eleitorais.
Isso significa que é possível auditar os resultados por urna e que não há risco de fraude – conclusão diametralmente oposta à que acabou sendo usada pelo PL.
No dia 20 de novembro, às vésperas da divulgação do relatório, Balbino demonstra medo com a publicação da versão final do documento. “Preciso ver o relatório antes dele sair. Estou inseguro ainda se devo permanecer no Brasil esses dias ou sair”, ele escreve a Carlos Rocha.
Balbino também desabafa com um sócio da Gaio a preocupação com a repercussão do relatório dentro da própria empresa. “Estou querendo chamar toda a equipe para uma sala e explicar o contexto. Talvez seja bom eles também saberem o que aconteceu, de não concordarmos com o relatório”, afirma.
Em 22 de novembro, o PL convocou uma coletiva de imprensa para lançar uma série de suspeitas sobre os modelos antigos das urnas e contestar o resultado das eleições, sem levar em conta as considerações de Balbino.
Naquela ocasião, Carlos Rocha disse: “Quando nós fomos analisar as urnas antigas, é impossível associar o registro de cada atividade ao hardware, ao equipamento físico que teria gerado aquela atividade. Em todas as urnas modelos antigos, o código é inválido. Então é impossível associar aquela atividade com a urna que realizou”.
O que diz a PF
Para a PF, o documento de Balbino apontando inconsistências na versão preliminar do relatório que acabou apresentado por Rocha é “a prova material de que os investigados tinham plena ciência de que os argumentos que embasaram a Representação eleitoral do PL eram falsos, não havendo qualquer vulnerabilidade nas urnas eletrônicas que pudessem desacreditar o pleito de 2022”.
Na avaliação da PF, os investigados “tinham consciência de que o argumento que fundamentou a representação pela nulidade dos votos computados nas urnas eletrônicas produzidas antes do ano de 2020 era inconsistente”.
“Mesmo cientes da chance remota de êxito, adotaram a referida estratégia com a finalidade de servir de fundamento para a tentativa de Golpe de Estado, que estava em curso”, concluem os investigadores.
Currículo
O relatório encomendado pelo PL não marcou o primeiro embate entre Carlos Rocha e o TSE. Ele é formado pelo Instituto de Tecnologia da Aeronáutica, que nos anos 1990 participou do projeto de criação da urna eletrônica.
Na década de 1990, Rocha se meteu em uma disputa com o TSE, tentando tomar para si a patente de invenção da urna eletrônica. Isso porque em 1996, uma empresa que venceu a licitação do TSE contratou o engenheiro para a fabricação dos aparelhos.
Rocha acionou o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) com o pedido de patente de invenção da urna, mas a solicitação acabou rejeitada em 2001.
Procurado pelo blog, Carlos Rocha não se manifestou.