O assunto do aborto pipoca de vez em quando, e tenho a impressão de que sempre causa confusão porque é tanto legalmente, quanto filosoficamente, enfocado de maneira errada.
Por exemplo, eu não votei na enquete, porque acho que falar em ser “a favor” do aborto distorce o que é a real posição majoritária dos proponentes. Ninguém é “a favor” do aborto, mas sim,
a favor do direito ao aborto; e essa diferença não é superficial, pois mesmo as pessoas que defendem esse direito certamente
preferem que abortos não acontecessem, mas apenas reconhecem que há situações em que ele é uma necessidade, seja médica, seja de exercício de direitos indisponíveis.
Não quero discutir o buraco sem fundo da ética pessoal. Qualquer um pode ter a filosofia, ou ideologia religiosa, que bem entender, e desejar comportar-se de acordo. Por isso, foco minha discussão em quais comportamentos devem ser legalmente validados, exigidos ou proibidos, porque apenas sobre esses comportamentos externos, e não sobre a convicção íntima de cada um, é que a sociedade deve se impor. Então, todo mundo pode ficar à vontade para convencer alguém a querer se comportar da forma que ela acha moralmente mais justificada.
Mas que tipo de ações, ou inações, o estado tem o direito legítimo de impor às pessoas?
E aqui vemos toda a miríade de argumentos lançados, com a mais extrema variação, desde “nenhum aborto pode acontecer, mesmo em caso de um estupro de criança que gerou uma gravidez de risco”, até “corpo da mulher, direito da mulher, não se metam nessa decisão”.
Só que as posições apresentadas são, frequentemente,
incongruentes, focando apenas nos aspectos que favorecem a conclusão preferida, sem considerar suas consequências se a situação muda para algo fora dos exemplos. Então, vamos
tentar abordar essa questão de forma
totalmente congruente e, para isso, vamos estabelecer algumas premissas, relativamente a questões que foram discutidas até aqui neste debate, para guiar o nosso raciocínio:
1 – Embriões tem o potencial de se desenvolverem como seres humanos, não importa o estágio em que se encontram, ou a terminologia médica usada para descrever esse estágio;
2 – Os direitos de um embrião tem exatamente a mesma importância que os direitos de uma pessoa já nascida;
3 – Nenhum direito no mundo é absoluto.
Tenho, aí, 3 simples premissas; então, se há
discordância de alguma delas, eventuais réplicas a este raciocínio poderiam começar dizendo em que, exatamente, discordam sobre elas. Pois precisamos saber se a nossa discordância é axiomática, partindo de valores diferentes, ou se é uma divergência de conclusão. Esse diagnóstico é necessário para qualquer debate ser frutífero, e sabermos exatamente sobre o que conversar.
Pois bem; de plano, consideremos que todos nós tomamos a decisão de inibir a criação de vida, toda vez que praticamos sexo sem propósito reprodutivo, ou mesmo, toda vez que um ser humano opta por não praticar sexo. Assim, a maior parte de nossas condutas é inibitória à vida em potencial, o que incongruentemente não é considerado por “defensores da vida” como uma má decisão (e claro que não é, mas esse é o destino lógico dessa linha de argumento).
Nem os religiosos que defendem que todo coito deve ter propósito reprodutivo escapam dessa incongruência; é que eles também impõem uma conduta omissiva; que se abra mão de qualquer oportunidade de coito fora do laço matrimonial; só que esses coitos
também tem o potencial de gerar vida, o que mostra que o valor de proteção à vida é uma alegação espantalho, que distrai de sua preocupação principal – apenas o tipo “certo” de vida (aquela gerada dentro das regras de convivência social dessas religiões), é buscada por suas ações.
Assim, sob a premissa de que
nenhum direito é absoluto, o direito à vida em emergir e desenvolver-se é condicionado à situações como a “liberdade das pessoas em optar por ter filhos”, o que já mostra que a vida não é um valor absoluto. Vamos manter isso em mente.
A pergunta se torna uma discussão sobre “aborto” apenas quando a opção por não permitir a ocorrência é tomada após o embrião já estar gerado, o que funciona como um razoável
discríminen da situação, e impõe uma colisão de direitos fundamentais; por um lado, temos o direito à vida e à segurança do feto; por outro,
o direito da mãe à disponibilidade de seu próprio corpo.
E é aqui, na minha opinião, que está o
erro fundamental em 99% das discussões sobre aborto que eu vejo, da perspectiva de seus opositores; todos expõem o argumento como se houvesse apenas um direito fundamental, o direito à vida, em jogo, quando em verdade, há uma contrapartida: o direito da mãe em dispor de sua própria integridade física. Vamos lembrar da premissa 2: “os direitos de um embrião tem exatamente a mesma importância que os direitos de uma pessoa já nascida”.
Para exemplificar a importância dessa ponderação, considerem o seguinte: se o feto tem o direito inalienável de dispor dos recursos biológicos da mãe durante o período de gestação, por que o direito cessa depois da gestação? Para aqueles que acham que não deve haver aborto mesmo em caso de risco de vida da gestante, isso coloca a vida do bebê como mais relevante que a vida da mãe.
Assim, por exemplo, se o bebê nascesse, por exemplo, com um defeito na medula que obrigasse a mãe a fazer doações de líquidos colhidos de forma invasiva, a ceder sua própria saúde para manter a criança viva, poderia o estado forçá-la a isso, ou prendê-la se ela se negasse? Pois essa é a mesma, exata, situação de dentro do corpo, só que agora, do lado de fora.
Vamos a uma coisa menos grave; poderia o estado forçar uma mãe a doar sangue para o filho recém-nascido, se ela se negasse? Sob qual fundamento, o de que a biologia da mãe está a disposição de outro ser humano?
É improvável que uma mãe se negasse? Talvez, mas se não houvesse mães não dispostas a doar-se, não existiria aborto e não estaríamos tendo esta conversa. Imaginem o caso de uma mãe de bebê, fruto de estupro, sendo forçada pelo estado a ficar no hospital à disposição da criança para doar-lhe sangue regularmente. Parece um bocado indefensável.
E ainda sob a premissa de que a vida como embrião tem a mesma, exata, importância, que a vida após o nascimento, em que data a soberania da criança sobre a mãe cessaria? Poderia um adulto de 20 anos evocar o direito de obrigar a sua mãe a entregar-lhe um órgão, se ele precisasse, independentemente de haver vontade de fazê-lo?
Quando os filhos deixariam de ser donos da fisiologia da mãe?
Para os opositores do direito de aborto, o marco é o nascimento; mas se perguntem, exatamente por que isso é um marco divisor? O filho deixa de ser filho quando nasce? A ideia me parece ser a de que antes de nascer a criança é indefesa, mas a criança também é indefesa após nascer. E muitos dos meus exemplos acima lidam com situações de pessoas adultas se tornando indefesas, como no caso da necessidade superveniente de reposição de órgãos doentes, ficando, mais uma vez, à mercê da fisiologia/disponibilidade da mãe.
Os argumentos que restam são que a mãe
é a única que pode zelar pela vida da criança e
deu causa à situação ficando grávida. Mas vamos examinar esses argumentos:
O primeiro confunde capacidade com obrigatoriedade. Sim, a mãe pode optar por doar sua fisiologia pelo bem estar do filho, mas isso não se traduz em obrigação. Ninguém é obrigado a fazer alguma coisa só porque pode, nem mesmo se for a única pessoa que possa. A fonte desse dever tem de estar em outro lugar.
Resta o argumento da responsabilidade pelos próprios atos. Esse argumento já nasce falho em casos de estupro, consentimento inválido (por meio de fraude, ou por pessoa incapaz, etc...), ou no caso de gravidez não violenta involuntária (camisinha furou, anticoncepcional defeituoso, pessoas criadas sem receber a devida educação de como se proteger durante o sexo, etc...).
Entretanto, mesmo que seja uma gravidez planejada da qual a pessoa mudou de opinião por uma infinidade de razões (só para trazer exemplos de motivações; divorciou-se antes do termo; marido assassinou seu pai após ser descoberto roubando dinheiro da família; perdeu o emprego e não tem mais recursos para cuidar da criança; outro filho ficou inválido e agora exige cuidados integrais, não havendo possibilidade de cuidar de um bebê; ou mesmo porque simplesmente mudou de ideia), o estado poderia se impor?
Aqui retornamos à questão que pus acima;
quando há colisão entre dois direitos fundamentais, sobre os quais o estado não tem preferência, ele se afasta, e por isso, prevalece arbitrariamente o direito daquele que tem mais capacidade de fazer valer sua pretensão. Sim, a mãe não tem o “direito” de matar o embrião, mas o embrião tampouco tem o “direito” de prioridade sobre o organismo que pertence à mãe.
Nesse cenário de uma idiossincrasia de prerrogativas, o estado impor uma das vontades significa violar sua obrigação igualmente importante de defender a outra. E por isso, ele se retira, ou deveria se retirar. Assim,
não existe uma prerrogativa da mãe de matar o filho, mas a prerrogativa da mãe de exercer um de seus próprios direitos fundamentais, mesmo às custas de haver consequências indesejáveis sobre um direito de outro.
A situação é análoga, por exemplo, a um avião caindo, em que há duas pessoas para escapar e um só paraquedas. A queda não é culpa de nenhuma da duas, ambas vítimas de um defeito; se eles entram em combate mortal pelo paraquedas, e uma mata a outra para se salvar, haverá o crime de homicídio,
mas ele estará acobertado pela escusa de estrita necessidade para salvaguarda de um direito de igual hierarquia, tornando o fato atípico (não criminoso).
E, se pretendem dizer que a situação não é igual se a mãe não estiver em risco de vida, bom, isso não muda em nada. Porque a hierarquia é dos
direitos, não dos riscos ou necessidades, nem do equilíbrio de forças entre interessados. Lembrem que o direito de garantir a manutenção da própria liberdade é um dos direitos que permite o uso de força letal. É por isso que, para escapar, podemos matar alguém que tenta nos sequestrar, sem sermos condenados por homicídio.
Por essa razão, ainda, se meu irmão for um sem teto, o estado não pode me obrigar a permitir que ele more na minha casa, mesmo havendo laço sanguíneo, assimetria de forças, desproporção de consequências, e a moradia sendo um direito fundamental.
Mais uma vez, é moral e ético que um irmão não deixe outro na penúria (vamos presumir não haver outras complicações de brigas, para manter a situação semelhante a um feto, que pessoalmente nunca fez mal a ninguém)? Até é. Mas não é algo que possa ser imposto.
Toda discussão sobre o aborto, portanto, tem de ser temperada pelo equilíbrio entre dois direitos igualmente fundamentais, e me parece que manter isso em mente tem o potencial de solucionar vários dos dilemas e das questões espinhosas aqui ponderadas. Vejamos:
P: O direito a abortar deve existir?
R: Sim, porque a manutenção de uma gravidez a seu termo é um processo que se estende no tempo, e se houver mudança na vontade subjetiva da mãe em deixar de ceder seu corpo à criança, obrigá-la a fazê-lo seria violar seu direito de auto-determinação sobre seu próprio organismo.
P: Se a mãe pode matar o filho antes de nascer, porque não pode matá-lo depois de nascer?
R: Porque a mãe
nunca pôde matar o bebê, o que ela pode fazer é não se pôr à disposição para nutrir a gestação, e a consequência disso seria a morte da criança como um desdobramento.
Mas se durante um aborto tardio perceber-se, contra as expectativas, que o bebê é viável, a obrigação do médico é mantê-lo vivo nas UTIs pré-natais. Se um dia a ciência médica for capaz de levar gestações a seu bom termo independentemente da fase em que se encontra, a decisão da mãe em não m ais manter seu corpo à disposição simplesmente não seria mais associada com a morte do embrião.
Claro, me parece que nesse caso ficaria rompida a relação de pátrio-poder/dever, e a criança deveria passar ao estado para adoção.
P: Há limites para o direito de aborto?
R: Sim, premissa 3 – “Nenhum direito no mundo é absoluto”. Isso significa que se a decisão de desistir da gravidez for muito tardia, ao ponto de o embrião já ser viável fora do corpo da mulher, a imposição de carregar a gravidez a termo e passar a criança a adoção passa a ser uma consequência da incapacidade da mãe de, exatamente, dispor arbitrariamente da vida do nascituro. Se isso significa aguardar os meses até o termo, ou um parto adiantado, vai depender de avaliação médica de qual procedimento implica menor risco para ambos.
Além disso, essa perspectiva permite concluir que a opção por um aborto deve ser livre, consciente e informada. Assim, quem tem a intenção de abortar deveria submeter-se a exames tanto físicos quanto psicológicos para que se determine se essa é uma decisão consciente, não algo feito impensadamente, em momento de raiva, dor, confusão, etc..., algo de que a mulher possa se arrepender depois.
Uma das vantagens da legalização do aborto é exatamente a possibilidade de se oferecer às mulheres interessadas esse tipo de atendimento, e o debate dessa questão de forma franca.
Da mesma forma, se o bebê for viável, mas o parto prematuro for arriscado para a mãe,
ela não terá a prerrogativa de escolher um aborto que lhe traga risco zero. Exatamente porque a vida do embrião é um fator que ela pode até querer ignorar, mas esse é um direito do qual ela não dispõe. Se escolher seguir por essa rota, terá de se submeter ao risco.
P: Gravidez de risco para mãe, feto defeituoso ou gravidez decorrente de estupro fazem alguma diferença no seu raciocínio?
R: Apenas nos termos de tolerância do limite pelo qual o médico estaria inclinado a realizar o aborto ao invés de aguardar o termo da gravidez para que a criança seja adotada. Isso porque, em todos esses casos, a terminação da gravidez não é uma questão de vontade, mas uma questão de saúde (inclusive saúde mental), e por isso, imaginável uma tolerância maior do risco de se realizar um parto antecipado nos casos de feto com alguma viabilidade.
Mas mesmo assim, se uma mulher estuprada resolveu, apenas aos 8 meses e 3 semanas, que não pode ter o bebê oriundo da violência em seu corpo por nem mais um minuto, ainda assim, pode ser que seja o caso de aguardar o termo da gravidez, de acordo com a avaliação médica da condição mental da mesma e dos riscos ao bebê viável.
P: Porque a mulher pode decidir e o homem não pode dar opinião? Afinal, ambos foram necessários para gerar o embrião.
R: Isso é verdade, mas mais uma vez, a mulher não está dispondo da vida da criança, ela está dispondo do seu próprio organismo, e o óbito do nascituri é um desdobramento da indisponibilidade dos recursos necessários à sua evolução. Sobre seu direito de autodeterminação, nenhum homem (ou outra mulher) pode lhe impor comportamentos. Em contraponto, se a mulher resolve abortar, mas a criança sobrevive, ela pode estar privada de seu poder materno, e as decisões sobre a criança no futuro podem vir a caber exclusivamente ao pai.
P: Aborto é assassinato?
R.: Não, mas também é um crime contra a vida. Então, a pergunta não faz sentido, é apenas um gatilho retórico. É como perguntar se roubo é furto; são dois tipos criminais diferentes que protegem o mesmo bem jurídico. Dito isso, o aborto feito/consentido pela mãe pode vir representar uma hipótese de
escusa legal, e assim, tornado um fato descriminalizado (o que ainda não aconteceu no Brasil exceto nas hipóteses de anencéfalo ou estupro). O aborto causado por terceiros continuaria sendo crime.
Dito isso, discordo do fato de que a pena para aborto causado por terceiros (art. 124 do CPB) tem apenas metade da pena de homicídio (art. 121 do CPB)). Porque, para mim, a vida antes do parto é tão valiosa quanto a vida após o parto. Uma pessoa que soca a barriga de uma mulher grávida e mata o feto deveria ir para a cadeia pelo mesmo tempo que alguém que saca um revólver e atira em um adulto.
Bom, são as questões que eu lembrei aqui. Existe alguma premissa que vocês queiram questionar, ou algum exemplo de situação “espinhosa” que eu não enfrentei? Vamos ver se é possível solucioná-la usando as premissas que eu colequei acima.
T+
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