Intelectuais de esquerda
Enviado: Sex, 17 Julho 2020 - 10:28 am
O que faz um intelectual? Ele precisa ser de esquerda?
https://oglobo.globo.com/opiniao/charme ... l-24536571Charme de intelectual
Muito do que Agamenon Mendes Pedreira escreveu seria impublicável hoje, o que mostra como os tempos mudaram
Eduardo Affonso 17/07/2020
‘Intelectual não vai à praia: intelectual bebe”, ensinava o Jaguar, intelectual que sabia do que estava falando e tinha lugar de fala.
Antes da pandemia, até havia quem filosofasse com uma cerveja na mão e os pés na areia de Ipanema, ou resolvesse os problemas do mundo argumentando com uma cachaça de rolha e ouvindo o mar de Itapuã. Mas intelectual que se preze bebe é no bar — prazer e dever não devem se misturar.
E qual o dever do intelectual? Era pensar e fazer pensar; hoje é problematizar. Procurar chifre em cabeça de cavalo e ignorar olimpicamente os unicórnios à sua volta. Como fazem os intelectuais de esquerda (“intelectual de esquerda” não é pleonasmo?).
Bertrand de Jouvenel disse que os intelectuais tendem à esquerda por desconhecimento teórico de como funcione o mercado (ninguém consegue saber tudo...), por soberba (sempre sabem mais que você) e por ressentimento e inveja (no capitalismo não lhes dão o devido valor). A esquerda lhes convém porque intelectual gosta de miséria; quem gosta de luxo é pobre. (A frase se imortalizou como sendo do Joãosinho Trinta — que era pobre e gostava de luxo — mas consta que seu autor intelectual seja o Elio Gaspari. Sendo a versão mais divertida que o fato, fiquemos com ela).
Minha geração se formou lendo — ou ouvindo falar de — Antonio Callado, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Paulo Freire, Sérgio Buarque de Holanda. A atual bebe na fonte de Marcia Tiburi (teórica da laicidade anal), Felipe Neto (agora no “New York Times”!), Rita von Hunty (para quem “é impossível ser humano de direita”). Quem, como eu, foi aluno da Lélia Gonzalez, enfrenta sérias dificuldades para ler Djamila. Quem, como eu, riu com Millôr, corta um dobrado com o Aroeira.
Nas igrejas barrocas, um elemento imprescindível é o tapa-vento — que não só protege das ventanias como resguarda a visão do altar, lugar sagrado, do espaço mundano da rua. Na mitologia mineira, entretanto, ele está lá para evitar que o diabo entre. Porque o diabo, como a maioria dos intelectuais, pega uma reta e vai toda vida, não faz curva. Se já de saída sua estrada entortou, pouco importa: vai nela até o fim.
Por isso é reconfortante ver um grupo de intelectuais assinando um manifesto na “Harper’s Magazine” contra a “cultura do cancelamento” — que foi adubada, germinou, cresceu e frutificou graças à intelectualidade. É animador que parte da intelligentsia tenha se dado conta da arapuca em que se meteu com o ativismo da pureza ideológica, da sinalização de virtudes, do bullying social e na criação da espiral de silêncio. É hora de pegar um retorno, cortar as asinhas do monstro e desinstalar da própria mente o aplicativo cujo resultado é a censura prévia, o cerceamento da liberdade de pensar.
Tudo poderia ter sido evitado se tivéssemos dado ouvidos ao Jacques Prévert: “Não se deve deixar os intelectuais brincar com fósforos”. Pois lhes demos fósforos, gasolina, baixa umidade e uma horda de militantes para abanar.
O que a gente precisa hoje é de intelectuais do porte do Agamenon Mendes Pedreira — colunista do GLOBO nos anos 80 e 90 — que tinha o destemor de afirmar que não costumava assistir aos filmes que criticava (“para não deixar que a obra interfira na minha análise rigorosa e independente”) e o despudor de assumir que, como sempre foi um sujeito “ignorante, prepotente, arrogante, mau-caráter e desonesto”, achou que poderia se tornar um bom jornalista. Todo mundo — inclusive os jornalistas — entendia a piada.
O provecto Agamenon, personagem dos cassetas Hubert e Marcelo Madureira, se referia ao presidente de então como Luís (ou Luísque) Mensalácio da Silva e não só não era cancelado como atraía leitores de todos os quadrantes do espectro político. Muito do que escreveu seria hoje impublicável, o que mostra como os tempos mudaram — para o bem e para o mal.
Uma certeza eu tenho: nenhum intelectual lerá esta coluna. Intelectual — já pontificava o Jaguar décadas atrás — não lê. Intelectual relê. Assim como beber e relutar em fazer autocrítica, isso faz parte do seu charme.