Hoje parece haver uma força inédita na história das sociedades secularizadas no sentido de questionamento do conhecimento especializado. Teorias alternativas com fraco embasamento tem ganhado popularidade inétida, e tem demonstrado organização a tal ponto, que simplesmente ignora-las, como expessão excêntrica de uma minoria irrelevante tem deixado de ser um posicionamento razoável.
Em boa parte a desconfiança aos especialistas tem por causa um problema antigo, que é a fraca educação formal da população em geral, e um problema novo, o da maior visibilidade de “teorias alternativas” através de redes sociais. Em grande parte essas teorias alternativas só ganham força devido a uma tensão entre o conhecimento especializado e crenças geralmente disseminadas em âmbito familiar-comunitário.
Essa tensão comumente era equilibrada primeiro por uma simples legitimação que o conhecimento científico recebia em esfera pública através de sua relevância para bom funcionamento de elementos impessoais da sociedade que possuem maior poder e extensão de influência, tal como grandes empresas e o próprio Estado. Segundo por esses valores comunitário-familiares terem baixo alcance se comparados com a educação escolar ou a própria mídia. A religião era um vetor até mais forte de disseminação dos valores comunitários mas, ao menos antes da revolução das redes sociais, religiões que almejavam ter relevância nacional ou internacional comumente tentariam evitar atritos com o Estado, com a ciência e com a mídia.
Essa contraposição que o conhecimento especializado pode gerar não é exatamente uma novidade. Lahire em sua obra “O Homem Plural: As Molas da Ação” comenta sobre tensões comuns entre a socialização familiar e a socialização escolar/acadêmica, tensões que se iniciam no próprio indivíduo.
É comum que uma pessoa ao alcançar certo nível de educação formal ignore, relativize ou coloque em posição secundária os valores comunitários que atritam com o conhecimento científico. Ou então que mantenha-se dividida buscando manter equilibrada sua “identidade” repartida. É claro que também é possível que o indivíduo simplesmente rejeite os valores da comunidade em que se localiza, por enxergá-los como pouco plausíveis diante do atrito com conhecimento científico.
De todo modo, quando não há numa comunidade um número suficiente de indivíduos que atinjam certo nível de educação formal é capaz que a pessoa sequer necessite lidar com eventuais atritos com o conhecimento científico que comprometam a plausibilidade de seus valores.
Entretanto, essa comunidade continuaria tendo seu alcance limitado pelo número daqueles que tomam parte ativa nela. Ocorre que a revolução das redes sociais tem mudado isso: “teorias alternativas”, perspectivas a-científicas, ou mesmo anticientíficas tem agora a possibilidade de ganhar uma boa visibilidade e deixam de depender exclusivamente de reprodução em meio comunitário.
Para obterem visibilidade nas redes sociais estas perspectivas não dependem de chancelamento de instituições de embasamento científico, não dependem de exame minucioso de seu embasamento (pelo menos não na mesma proporção que uma pesquisa científica), dependem muito mais do número de pessoas que concordem (mesmo que tacitamente) com o que afirmem. Interessa mais o número de pessoas que enxerguem suas opiniões representadas por essas perspectivas que seu embasamento.
A visibilidade destas perspectivas faz com que ganhem relevância formando grupos organizados em volta delas. Esta relevância por sua vez contrasta com o próprio conhecimento científico, e chega a antagonizá-lo pontualmente. De modo tal que mesmo um indivíduo não tão desprovido de educação formal possa enxerga-las como minimamente plausíveis, especialmente se tratando de um uma área do conhecimento pouco conhecida por essa pessoa. Imaginemos um engenheiro que venha a duvidar se houve de fato o holocausto ou um historiador dando o benefício da dúvida a terraplanistas.
Deste modo, mesmo sujeitos com educação superior podem afirmar que o criacionismo é uma alternativa válida a Evolução Darwinista, parte por confundirem liberdade religiosa com legitimidade epistemológica, e parte porque muitas pessoas que o cercam acreditam na Evolução, mas sem saber de fato explica-la. Quanto pior a educação for numa sociedade, mais fácil mesmo indivíduos de relativa boa formação nessa sociedade se encontrarem nessa situação, isto dada menor resistência a perspectivas anticientíficas em países menos educados. Resistência que pode barrar evolução da visibilidade dessas perspectivas, e mantê-las restritas, ou mesmo “domadas”.
Sujeitos que questionam o consenso científico sem muito embasamento sempre existiram, assim como sempre existiram aqueles que tentam fundir fé (religiosa ou ideológica) e conhecimento científico objetivo. Sempre existiu quem se aproveitasse da mencionada tensão entre conhecimento especializado e valores familiares-comunitários para representar uma tensão entre diferentes forças políticas. Mas hoje estes se tornaram mais visíveis: sua visibilidade não é mais necessariamente condicionada por um “filtro” através da mídia, ou de conhecimento especializado. A nova visibilidade destes sujeitos favorece a conexão entre grupos de perspectiva anticientífica, lhes dando maior dimensão.
Assim, se valendo da inabilidade de indivíduos dentro de um grupo para explicar sua confiança no conhecimento especializado, ideólogos anticientíficos/a-científicos sugerem (ou afirmam abertamente) que um conhecimento especializado é uma crença como qualquer outra crença, tornando-o (para muitos leigos) tão plausível quanto qualquer crença ou opinião pessoal. O especialista deixa de ser de fato um especialista, dotado de conhecimento especializado objetivo, para ser só mais um porta voz de uma crença como qualquer outra. A objetividade do conhecimento é botada em dúvida, e sua qualidade passa a depender do quanto agrada a um bom número de defensores. A confiança no especialista é reduzida a crença.
https://medium.com/altru%C3%ADsmo-efica ... 99fdb979fe
Por qual motivo a ciência e os especialistas eram menos questionados no passado recente?
Nota: apesar do título mal colocado (optei por manter o mesmo da matéria), o texto é válido de uma forma geral. Questionar é sempre importante, especialmente no meio científico. Entretanto, não se deve confundir o questionamento cético com o questionamento negacionista. O primeiro, questiona com embasamento e conhecimento de causa. Já o segundo, questiona antes mesmo de tentar entender sobre o que se trata o assunto, pois já tem a sua opinião formada.
- Agnoscetico
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Se for pra questionar Apelo a autoridade acho válido (a melhor opção é ouvir mais de um especialista, revisão de pares, e coisas desse tipo), se for por implicância ideológica aí sou contra.
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Cinzu, ainda não li seu post. Mas é claro que sabemos do que se trata.
O título não é mal escolhido não, este é um questionamento muito importante e uma discussão que deveria estar mais presente na sociedade.
Eu poderia escrever um livro sobre isso e no antigo CC já havia começado a abordar este tema em posts que nem todos compreenderam. Mas há muito, mas muito, caroço neste angu.
É muito difícil convencer alguém do que realmente está acontecendo sem apresentar toneladas de provas e embasamento, mas isto será tarefa para vários posts. Mesmo assim já dou aqui meu diagnóstico: o fenômeno da onda de negacionismo científico não é algo espontâneo e casual.
Ao contrário, ele vem sendo insuflado por interesses diversos, porém muito poderosos, que acabaram fortuitamente se associando.
As primeiras forças a investirem sistematicamente no descrédito da Ciência tiveram origem na multi-bilionária indústria norte-americana da religião cristã. Notadamente os grupos ligados a defesa do fundamentalismo cristão.
Quem já ouviu falar do Discorvery Institute deveria procurar saber mais sobre o Documento da Cunha, um memorando interno que vazou em 1999 e que simplesmente delineia um ambicioso plano para reverter o que eles chamam de a "sufocante visão materialista de mundo" promovida pela Academia.
Mas a esta trincheira vieram se juntar outros grandes interesses econômicos que hoje se encontram em posição de terem que confrontar o consenso científico diante da opinião pública. Interesses para os quais é conveniente disseminar a desconfiança pública na Ciência. Destes, os exemplos mais notórios vem da indústria do tabaco, que desde a década de 70 patrocina médicos e cientistas sem escrúpulos, e mais recentemente a poderosa indústria do petróleo usando toda a sua influência política e econômica para promover o negacionismo climático.
Porém foi do investimento da indústria do tabaco que surgiu o sujeito (que agora me foge o nome pois estou escrevendo de memória) que fundou o infame George Marshall Institute. Uma instituição que se dedicava unicamente a produzir retórica anti-científica. Esse cara, um físico ex-consultor da R.J.Reynolds (a fabricante de cigarros), fez escola e seu estilo de argumentação é copiado por picaretas como o Molion e o Ricardo Felinto. Todos estes e vários outros veladamente a soldo de interesses escusos.
O pilantra começou usando toda sua verborragia e conhecimento científico para tentar desacreditar perante a opinião pública milhares de pesquisas que apenas confirmavam o óbvio que qualquer pessoa já sabia: fumar faz mal à saúde. Mas depois percebeu que havia mais mercado para toda essa "tecnologia" de negacionismo que ele havia desenvolvido e assim surgiu o G.M Institute, que fez bom dinheiro defendendo o programa Guerra nas Estrelas do Reagan contra todas as críticas da comunidade científica norte-americana e depois também panfletando contra o banimento dos CFCs.
Logo o G.M Institute estaria também engajado em desacreditar qualquer prova científica do aquecimento global e de suas consequências.
Esta é uma longa história, com muitos desdobramentos, e que precisa ser conhecida em detalhes.
O título não é mal escolhido não, este é um questionamento muito importante e uma discussão que deveria estar mais presente na sociedade.
Eu poderia escrever um livro sobre isso e no antigo CC já havia começado a abordar este tema em posts que nem todos compreenderam. Mas há muito, mas muito, caroço neste angu.
É muito difícil convencer alguém do que realmente está acontecendo sem apresentar toneladas de provas e embasamento, mas isto será tarefa para vários posts. Mesmo assim já dou aqui meu diagnóstico: o fenômeno da onda de negacionismo científico não é algo espontâneo e casual.
Ao contrário, ele vem sendo insuflado por interesses diversos, porém muito poderosos, que acabaram fortuitamente se associando.
As primeiras forças a investirem sistematicamente no descrédito da Ciência tiveram origem na multi-bilionária indústria norte-americana da religião cristã. Notadamente os grupos ligados a defesa do fundamentalismo cristão.
Quem já ouviu falar do Discorvery Institute deveria procurar saber mais sobre o Documento da Cunha, um memorando interno que vazou em 1999 e que simplesmente delineia um ambicioso plano para reverter o que eles chamam de a "sufocante visão materialista de mundo" promovida pela Academia.
Mas a esta trincheira vieram se juntar outros grandes interesses econômicos que hoje se encontram em posição de terem que confrontar o consenso científico diante da opinião pública. Interesses para os quais é conveniente disseminar a desconfiança pública na Ciência. Destes, os exemplos mais notórios vem da indústria do tabaco, que desde a década de 70 patrocina médicos e cientistas sem escrúpulos, e mais recentemente a poderosa indústria do petróleo usando toda a sua influência política e econômica para promover o negacionismo climático.
Porém foi do investimento da indústria do tabaco que surgiu o sujeito (que agora me foge o nome pois estou escrevendo de memória) que fundou o infame George Marshall Institute. Uma instituição que se dedicava unicamente a produzir retórica anti-científica. Esse cara, um físico ex-consultor da R.J.Reynolds (a fabricante de cigarros), fez escola e seu estilo de argumentação é copiado por picaretas como o Molion e o Ricardo Felinto. Todos estes e vários outros veladamente a soldo de interesses escusos.
O pilantra começou usando toda sua verborragia e conhecimento científico para tentar desacreditar perante a opinião pública milhares de pesquisas que apenas confirmavam o óbvio que qualquer pessoa já sabia: fumar faz mal à saúde. Mas depois percebeu que havia mais mercado para toda essa "tecnologia" de negacionismo que ele havia desenvolvido e assim surgiu o G.M Institute, que fez bom dinheiro defendendo o programa Guerra nas Estrelas do Reagan contra todas as críticas da comunidade científica norte-americana e depois também panfletando contra o banimento dos CFCs.
Logo o G.M Institute estaria também engajado em desacreditar qualquer prova científica do aquecimento global e de suas consequências.
Esta é uma longa história, com muitos desdobramentos, e que precisa ser conhecida em detalhes.
- Agnoscetico
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- Registrado em: Sáb, 21 Março 2020 - 11:46 am
Um exemplo de questionamento a ciência feita com base em viés ideológico - começa em 2:31
Os perigos da tecnologia
youtu.be/wH66ocd26Uw
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- Agnoscetico
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- Registrado em: Sáb, 21 Março 2020 - 11:46 am
Talvez porque negacionismo e fake news estejam tão em evidência, como nunca jamais estiveram antes.
Talvez porque cientistas hoje tenham que desperdiçar tempo argumentando contra coisas ridículas como terraplanismo, DI e outras merdas.
Talvez porque imbecis com QI de 2 dígitos achem que suas opiniões tenham tanta validade quanto hipóteses, teorias e leis científicas: que sejam simples questão de opinião: "tenho e minha e voce a sua".
Não sei se a humanidade está emburrecendo ou se é a internet que está amplificando,
aumentando o alcance de uma estupidez que já existia, mas que estava oculta.
Vi num meme que manuais de carros atualmente contem advertência para não beber água de bateria...
Canos conduzem água, gás, coisas necessárias. Mas tambem conduzem merda e se entopem dela as vezes.
E a internet é um desses canos que conduzem igualmente bem tanto informação valiosa, quanto puro lixo.
Tambem: ciência não é, nunca foi, nem nunca será como uma democracia, onde qualquer opinião é válida. Chamem-na de opressora o quanto quiserem.
É bizarro, mas tem gente que pensa assim. Como se não bastassem o negacionismo e as fake news.
Ela seria mais como uma ditadura: ditadura da natureza, dos fatos, do que quer que as evidências e os experimentos indiquem e comprovem.
Afirmar o contrário é tão disparatado quando dizer que a matemática é "opressora" ou "antidemocrática" porque só "permite" que 2 + 2 sejam 4 e não 3 ou 5.
Ou dizer que tal coisa é assim ou assado porque está num livro santo, mais remendado que roupa de mendigo e menos credível que as histórias da marvel.
Porque o pastor disse, o padre disse, o político de estimação disse, a (sub)celebridade disse, a pqp disse. "Disse" não, vomitaram ou arrotaram, seria mais adequado.
Ou que a equação e= mc^2 é "sexista" ou algo parecido (Luce Irigaray).
As opiniões sobre física e biologia do joãozinho da esquina e da tia do zap-zap, que nunca estudaram, nem nunca se importaram com estas matérias, não valem um peido.
Esta ai o porquê de cientistas serem tão questionados nos dias de hoje.
Talvez porque cientistas hoje tenham que desperdiçar tempo argumentando contra coisas ridículas como terraplanismo, DI e outras merdas.
Talvez porque imbecis com QI de 2 dígitos achem que suas opiniões tenham tanta validade quanto hipóteses, teorias e leis científicas: que sejam simples questão de opinião: "tenho e minha e voce a sua".
Não sei se a humanidade está emburrecendo ou se é a internet que está amplificando,
aumentando o alcance de uma estupidez que já existia, mas que estava oculta.
Vi num meme que manuais de carros atualmente contem advertência para não beber água de bateria...
Canos conduzem água, gás, coisas necessárias. Mas tambem conduzem merda e se entopem dela as vezes.
E a internet é um desses canos que conduzem igualmente bem tanto informação valiosa, quanto puro lixo.
Tambem: ciência não é, nunca foi, nem nunca será como uma democracia, onde qualquer opinião é válida. Chamem-na de opressora o quanto quiserem.
É bizarro, mas tem gente que pensa assim. Como se não bastassem o negacionismo e as fake news.
Ela seria mais como uma ditadura: ditadura da natureza, dos fatos, do que quer que as evidências e os experimentos indiquem e comprovem.
Afirmar o contrário é tão disparatado quando dizer que a matemática é "opressora" ou "antidemocrática" porque só "permite" que 2 + 2 sejam 4 e não 3 ou 5.
Ou dizer que tal coisa é assim ou assado porque está num livro santo, mais remendado que roupa de mendigo e menos credível que as histórias da marvel.
Porque o pastor disse, o padre disse, o político de estimação disse, a (sub)celebridade disse, a pqp disse. "Disse" não, vomitaram ou arrotaram, seria mais adequado.
Ou que a equação e= mc^2 é "sexista" ou algo parecido (Luce Irigaray).
As opiniões sobre física e biologia do joãozinho da esquina e da tia do zap-zap, que nunca estudaram, nem nunca se importaram com estas matérias, não valem um peido.
Esta ai o porquê de cientistas serem tão questionados nos dias de hoje.
- Fernando Silva
- Conselheiro
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- Registrado em: Ter, 11 Fevereiro 2020 - 08:20 am