Para começar, pesquisadores da UFPR (Universidade Federal do Paraná) estão desenvolvendo uma vacina usando nanotecnologia:
Abaixo segue um resumo de como funciona a vacina e uma entrevista com o coordenador do projeto.
NANOTECNOLOGIA NA PRODUÇÃO DE VACINA CONTRA SARS-COV-2: VALORIZANDO A CIÊNCIA NACIONAL
O departamento de Bioquímica da UFPR está desenvolvendo uma vacina para o SARS-CoV-2 (o novo coronavírus), utilizando nanotecnologia. O projeto prevê modificar geneticamente bactérias Escherichia coli para a produção de 3 substâncias que, quando unidas, resultarão em uma partícula semelhante ao vírus da Covid-19: o polímero PHB (polihidroxibutirato, popularmente conhecido como poliéster), o fragmento RBD (domínio de ligação ao receptor, do inglês “receptor-binding domain”, uma região da proteína SPIKE do coronavírus) e a proteína E (uma proteína do envelope viral).
O PROJETO
A utilização de bactérias E. coli para produção de proteínas em laboratório é um método bastante conhecido. As bactérias são seres procariontes (não possuem núcleo compartimentalizado nem organelas intracelulares) e possuem dois grupamentos genéticos: o “DNA principal” e o “DNA acessório”. Este último é conhecido como plasmídeo, um grupamento com menor número de genes, e está relacionado com a “reprodução sexuada” bacteriana, com os mecanismos de resistência aos antibióticos e é por meio dele que se realizam as alterações genéticas nas bactérias. Essa manipulação genética é chamada de “transformação bacteriana” (transformamos as bactérias naquilo que queremos). Uma vez que os genes de interesse estão dentro da bactéria, elas são estimuladas a “expressar os genes” (ler o gene e produzir a proteína). Ao final, o produto de interesse é purificado para que possa ser utilizado.
Nesta pesquisa, serão 3 grupos de bactérias modificadas: uma com o gene para o PHB, uma com o gene para a região RBD da proteína SPIKE e uma com o gene para a Proteína E.
As proteínas RBD e E são chamadas de antígenos, que são substâncias estranhas ao corpo e, quando reconhecidas, desencadeiam ativação do sistema imunológico. Para que esses antígenos fiquem mais facilmente expostos na nanopartícula a ser produzida, os pesquisadores adicionaram um gene para a síntese de um “conector”. Este conector vai ter a função de ligar esses antígenos às partículas de PHB.
A ESCOLHA DOS ANTÍGENOS
O SARS-CoV-2 é o novo integrante de uma “família” de vírus. Isso significa que existem certas características em comum entre eles. No entanto, esse novo integrante apresenta algumas particularidades estruturais, como maior variedade de proteínas estruturais e algumas modificações estruturais nas proteínas em comum com os outros vírus.
Como escolher, então, o melhor antígeno para fazer uma vacina? Esse é um ponto importante, porque nem tudo que o vírus apresenta é capaz de ser reconhecido ou tem poder de gerar resposta imunológica. Sendo assim, devido às semelhanças com os outros vírus e devido aos dados presentes na literatura, as duas proteínas citadas foram escolhidas (RBD e Proteína E).
A região RBD faz parte de uma das proteínas mais importantes do SARS-CoV-2, a proteína SPIKE. Tanto que esta é a estrutura que dá nome a esta família de vírus (“coronavírus” = “vírus com coroa”, em que a coroa é a organização da proteína SPIKE da superfície viral). Com a SARS de 2003, foi visto que pacientes geraram anticorpos capazes de reconhecer esta estrutura. Além disso, esses mesmos anticorpos foram capazes de neutralizar a ação do SARS-CoV-2 em um experimento com células. Logo, existe fortes indícios de que essa é uma região de “vulnerabilidade” do vírus.
Já a proteína E foi escolhida com base em dados sobre a sua importância para a virulência do vírus SARS-CoV (virulência é a capacidade que um patógeno tem de causar a doença, seja ele vírus, bactéria, protozoário, etc.). Por ela ser idêntica ao da SARS-CoV-2, os pesquisadores pretendem avaliar se uma resposta imune contra essa região viral é importante na prevenção da doença.
A ESCOLHA DO MODELO BACTERIANO
Existem, essencialmente, dois modelos para produzir proteínas de interesse: os modelos procariontes (bactérias, como a E. coli) e os eucariontes (fungos, por exemplos). Uma das grandes diferenças é que os procariontes não apresentam organelas. Isso faz com que, durante a produção de uma proteína, ela não sofra “ajustes” que são chamados “alterações pós-traducionais” (é como se fosse colocar acessórios no carro novo; enquanto os procariontes produzem um carro sem vidro elétrico, sem insulfilme e sem som, os eucariontes oferecem teto solar, câmera 360° e ignição automática)
Em algumas situações isso pode ser um fator importante, porque a forma pode alterar muito a função, principalmente em vacinas. No caso em questão, a proteína SPIKE é uma proteína que tem várias moléculas de açúcares ligadas a ela (resultado de um processo pós-traducional). Felizmente, já existe trabalho mostrando que anticorpos de pacientes que tiveram Covid-19 conseguiram se ligar à região RBD produzida por E. coli. Portanto, neste caso, não precisamos nos preocupar tanto com esse fator.
A ESCOLHA DA NANOPARTÍCULA
A escolha pelo PHB se deu por alguns motivos. Primeiramente, ele é um material barato, com um custo ao redor de U$5,00 o quilo do produto e apresenta produção em grande escala aqui no Brasil. Em segundo lugar, é um produto que pode assumir diferentes tamanhos, desde nanopartículas até produtos visíveis, uma vez que já existem técnicas para fazer isso. Por esses dois fatores, o PHB é algo que viabiliza muito a produção em larga escala da vacina, caso ela venha se mostrar promissora.
No entanto, não é apenas por questões econômicas que se deu a sua escolha. O PHB já é de uso medicinal e é uma substância biodegradável pelo ser humano. Além disso, por poder assumir a configuração de nanopartícula, ele permite a produção de uma partícula muito semelhante ao vírus (vai ter o tamanho parecido e com as moléculas do vírus na superfície, “simulando” muito bem o vírus, sem causar a doença).
CONSIDERAÇÕES
A ciência brasileira é competitiva e apresenta profissionais dedicados e qualificados. Frente aos problemas sistemáticos do ensino, da pesquisa e do desfalque infraestrutural na pós-graduação, nossos cientistas continuam demonstrando sua capacidade e se reinventando para dar uma resposta efetiva e o mais rápido possível para a questão atual da pandemia. Vamos exercitar nossa curiosidade sobre o que passa dentro dos muros das Universidades Federais e apoiar as milhares de pesquisas que, em algum momento, refletem no nosso dia-a-dia. A todos os cientistas do Brasil, obrigado e boa sorte!
CONFIRA A ENTREVISTA NA ÍNTEGRA
1. Soube da sua pesquisa por uma matéria do site da UFPR. Lá, havia uma explicação geral do projeto, em que vocês pretendem usar a E. coli e inserir genes para a expressão de polihidroxibutirato e genes para a expressão de fragmentos virais do SARS-CoV-2. Você poderia explicar sobre o desenho do estudo, as etapas que serão executadas?
Resposta: A ideia é ancorar na superfície de partículas de PHB proteínas ou fragmentos de proteínas virais por duas estratégias. A primeira estratégia é in vitro, que consiste em purificar as proteínas e o polímero separadamente e depois uni-los, enquanto a segunda é in vivo, quando a síntese das proteínas e do polímero ocorrem simultaneamente dentro da bactéria. A estratégia in vivo tem a vantagem de ser mais prática pois temos apenas que retirar o polímero da bactéria e já teremos as partículas modificadas para imunização. A desvantagem dessa abordagem é que não conseguimos controlar muito o tamanho das partículas dentro da bactéria. Portanto, para trabalhar com nanopartículas por enquanto temos que seguir pela estratégia in vitro.
Vale ressaltar que as proteínas que estamos produzindo tem um “conector”, um fragmento de uma proteína que naturalmente se liga ao PHB, para permitir que as proteínas virais também cumpram essa função. O conector tem a vantagem de forçar a ligação das proteínas virias de tal forma que elas fiquem voltadas para o meio externo da partícula. Isso se aproxima bastante da organização estrutural do vírus, principalmente quando nos referimos a proteína Spike que fica exposta na superfície. Também faz com que os antígenos virais possam ser mais facilmente reconhecidos pelo sistema imune.
2. Como se deu a escolha dos fragmentos virais?
Resposta: Nós escolhemos o fragmento RBD da Spike de SARS-CoV-2 já pacientes recuperados da SARS de 2003 apresentavam anticorpos neutralizantes contra essa região da proteína. Esses anticorpos foram capazes de neutralizar a ação do SARS-CoV-2 em cultura de células de mamíferos. Portanto, essa foi uma escolha natural quando começamos a ler mais detalhadamente a literatura sobre coronavírus que infectam humanos. Durante nossa pesquisa bibliográfica, nós também encontramos informações bastante relevantes sobre o papel da proteína E (proteína do envelope) para a virulência do SARS-CoV. Como as proteínas E do vírus de 2003 e do SARS-CoV-2 são idênticas, achamos que investigar a resposta imune contra a E pode ser importante.
Entretanto, ainda não temos relato de imunidade neutralizante contra a proteína E do SARS-CoV-2.
3. É possível que o epítopo imunogênico seja uma estrutura quaternária, certo? Utilizando um modelo procarionte, essa avaliação fica comprometida?
Resposta: Sim. Sempre existe essa preocupação com a estrutura e aqui dois motivos precisam ser levantados. O primeiro diz respeito a produzir apenas um pedaço da proteína que não é a mesma coisa que produzir a proteína inteira. Em muitos casos, quando se tenta produzir apenas um fragmento ele se desorganiza estruturalmente e não é reconhecido pelos anticorpos como deveria. O segundo ponto bastante crítico diz respeito as modificações pós-traducionais e nesse caso a principal é a glicosilação da proteína Spike.
Já temos na literatura dados estruturais que mostram o reconhecimento do fragmento RBD produzido em E. coli por anticorpos de pacientes positivos para COVID-19. Isso nos dá a pista que a glicosilação não seria essencial para gerar anticorpos. Entretanto o efeito neutralizante pode ser mais fraco.
Em testes imunológicos preliminares, conseguimos diferenciar soros de pacientes positivos para COVID-19 contra os negativos. Sendo assim, é provável que o método que estamos aplicando em bactéria consegue gerar o fragmento RBD estruturado. Entretanto, estamos em andamento com a clonagem desse fragmento para expressão em vetores eucarióticos para contornar o problema da ausência de glicosilação em E. coli.
4. Será possível determinar qual fragmento é imunogênico, caso os resultados venham a se mostrar promissores?
Resposta: Acho que em parte respondi acima. Mas o que queremos em breve é produzir uma biblioteca com vários peptídeos possivelmente imunogênicos da Spike que foram localizados por análise computacional e publicados recentemente por um grupo da China. Eventualmente, poderemos fazer um combinado dos peptídeos mais imunogênicos e produzir partículas mistas, que apresentem todos esses peptídeos simultaneamente. Isso provavelmente deve reduzir bastante a “camuflagem” do vírus frente ao sistema imune por mutações pontuais em um único epítopo, que é um entrave na geração de vacinas com resposta imune persistente.
5. Por que da escolha desse polímero, o PHB? Quais são as vantagens e desvantagens do seu uso em vacinas, em comparação com os outros “veículos” de vacinas inativadas?
Resposta: esse polímero já tem liberação para uso medicinal em humanos pela FDA dos EUA, pois é completamente biodegradado em humanos. O uso atual é para suturas absorvíveis, próteses teciduais e dispositivos para liberação controlada de fármacos. Portanto acreditamos que se demonstrarmos a funcionalidade em testes pré-clínicos não será complicado conseguir a liberação para avançar aos testes clínicos.
Além disso, é um polímero que tem um valor bastante acessível algo em torno de U$ 5,00 o quilo. Aqui no Brasil, a Biocycle produz cerca de 3000 toneladas por ano, a Bio-on na Itália 10.000 toneladas ano e há uma planta chinesa que objetiva em breve produzir 50.000 toneladas ano. Portanto, trata-se de um polímero viável se imaginarmos a produção de milhões de doses de vacina.
Outra característica interessante desse polímero é que podemos moldar partículas de diferentes tamanhos com técnicas já estabelecidas na indústria. Isso quer dizer que a transferência de tecnologia da bancada para a produção em larga escala seria menos complicada, pois já há muita tecnologia estabelecida para esse polímero.
6. Na matéria, também havia menção a outras vacinas criadas por essa técnica. Qual foi o desfecho delas?
Resposta: o grupo do Prof. Bernd Rehm da Griffith University in Brisbane na Austrália tem se dedicado há muitos anos para o uso médico de partículas de PHB modificadas. Esse grupo publicou dados bastante promissores quanto a imunização de camundongos contra Mycobacterium tuberculosis (bactéria causadora da tuberculose) e contra o vírus da Hepatite C. Entretanto, não encontramos dados sobre testes clínicos para essas duas vacinas.
7. Em um cenário otimista, qual é o prazo que vocês objetivam finalizar esse projeto?
Resposta: Nosso planejamento inicial era mais conservador e gostaríamos de concluir o projeto de 24 meses apenas com os testes pré-clínicos e demonstrar em detalhes a prova de conceito. Porém, com o desenrolar rápido das primeiras semanas do projeto e a chegada de novos pesquisadores, acreditamos que caso a vacina seja efetiva em camundongos, seria possível realizar ao menos os testes clínicos de fase I e II, até o fim do projeto.
Claro que tudo isso depende da eficiência da própria vacina, da sua segurança, do tempo para avaliação do pedido e licenciamento dos testes, de encontrarmos parceiros interessados em recrutar voluntários e executar os testes.
Portanto, apesar de entendermos perfeitamente o clamor da sociedade que uma vacina seja disponibilizada logo, seria muito especulativo estabelecer uma data para que tudo isso aconteça.
8. Em comparação com as outras várias modalidades de vacinas sendo pesquisadas, qual o espaço essa conseguiria ocupar, caso fosse produzida em larga escala? Ela é uma modalidade competitiva de imunização?
Resposta: nós acreditamos que essa abordagem é competitiva tanto em imunização quanto em custo de produção. O custo será um fator que pesará adiante. No momento, desponta a vacina de Oxford em parceria com a Astra Zeneca que utiliza um vetor adenoviral. Provavelmente, essa será a primeira no mercado e a ser distribuída mundialmente. Entretanto, temos dúvidas quanto ao custo de produção e o valor de mercado. Eventualmente, países em desenvolvimento como o Brasil terão que optar por tecnologias que sejam igualmente efetivas, porém mais baratas, para reduzir o impacto econômico que já será inevitável por conta da pandemia.
Além disso, surgem mais frequentemente, inclusive com publicações científicas, notícias que a imunidade contra o SARS-CoV-2 não é de longo termo e aparentemente diminui rápido ao longo de alguns meses. Portanto, é bem provável que a vacina contra a COVID-19 tenha que ser tomada anualmente. Nesse cenário, vamos precisar de várias tecnologias funcionando para suprir o mercado.
João, se for possível, eu gostaria de fazer alguns agradecimentos à equipe que está trabalhando diretamente nesse projeto:
Ao coordenador do projeto Prof. Emanuel Maltempi de Souza, ao Prof. Wanderson Duarte da Rocha (Depto. de Bioquímica e Biologia Molecular - UFPR), a Profa. Dayane Alberton (Depto. de Análises Clínicas - UFPR) aos Professores Breno Castello Branco Beirão e Silvio Marques Zanata (Depto. de Patologia Básica – UFPR), aos pós-docs Luis Paulo Silveira Alves e Maritza Araújo Todo Bom, ao doutorando Edson Yu Sin Kim e a mestranda Maria Luisa Terribile Budel (ambos do Programa de Pós-graduação em Ciências: Bioquímica). Esses são os nomes que trabalham mais proximamente, mas existe obviamente uma lista extensa de estudantes e pesquisadores que contribuem para esse trabalho.
Agradecemos a todos!”