Estou sem tempo para assistir, mas contribuo com um texto que li outro dia sobre o assunto (deixando claro que não necessariamente concordo com o exposto, mas se encaixa bem no tema):
Fé e razão
10 de agosto de 2013 Por Nicolas Ramaux
Gostaria de pedir ao meu leitor de considerar favoravelmente uma doutrina que pode parecer altamente paradoxal e subversiva. A doutrina é essa: não é desejável acreditar em uma proposta quando não existe nenhuma razão para pensar que possa ser verdadeira.
Russell, 199. Tradução livre.
Quando estamos lendo qualquer obra, por exemplo, de teologia ou de metafísica escolástica, devemos perguntar a nós mesmos: Este livro contem raciocínios abstratos sobre quantidade e número? Não. Contêm raciocínios experimentais sobre questões de fato e de existência? Não. Então deve ser queimado, porque somente contem sofismas e ilusões.
Hume, 1983. Tradução livre¹.
Precisões
“Fé e razão”: este tema é amplo, logo vago. Muitos temas podem ser desdobrados desta formulação. Vou tentar restringir o escopo, precisando de qual fé e de qual razão pretendo falar.
Crenças e razão são dois objetos indispensáveis de qualquer processo cognitivo. Assim, como o explica o filósofo Jerry Fodor (Fodor 1975), qualquer raciocínio nasce de crenças e produz outras crenças. O raciocínio é um processo cognitivo particular, geralmente consciente, que pode tomar muitas formas: raciocínio lógico (dedução, indução, generalização, etc.), raciocínio por analogia, raciocínio intuitivo, etc.
No que segue, não qualquer crença vai ser objeto do meu discurso. À palavra “fé”, vou substituir as crenças de natureza dogmática, religiosa, as crenças na transcendência, no divino, no sobrenatural, etc. Muitas vezes, nomearei estas crenças “religião”, a ser entendida não como organizações humanas, mas sim como conjuntos de crenças desta natureza.
Por outro lado, também não qualquer raciocínio é objeto da minha discussão. O raciocínio que chamarei às vezes de “ciência” ou “método científico” é o raciocínio subjacente ao materialismo científico. Para uma explicação detalhada e precisa do materialismo científico, recomendo a definição do Jean Bricmont (Bricmont 2001).
Introdução
O momento parece ser propício para o diálogo, após séculos de conflitos e de separação, entre razão e fé, ou mais precisamente como acabo de detalhá-lo, entre ciência e religião. Muitos seminários e encontros floresceram sobre este tema. Cientistas famosos como Friedrich von Weizsacker e Paul Davies receberam o prêmio “para o progresso da religião”, da fundação Templeton. A American Association for the advancement of Science organizou em abril 1999 um debate público sobre a existência de Deus no qual o Steven Weinberg (prêmio Nobel de física) argumentou com o pastor e físico John Polkinghorne. O positivismo passou de moda em filosofia e a ciência pós-quántica, pós-gödeliana, se tornou humilde. Por outro lado, os teólogos começaram a escutar a ciência e abandonaram as tentativas de contradizê-la ou ainda de controlá-la.
Tudo está pelo melhor no melhor dos mundos? Não!
A tese que quero defender, ao contrário da tendência acima ilustrada, tem como objetivo mostrar que quando bem entendidos, os caminhos científicos e religiosos são incompatíveis. Que seja aqui bem claro que limito esta incompatibilidade à procura de um objetivo em particular, detalhado mais a frente.
Obviamente, o caminho religioso é muito difícil de se definir claramente e com precisão. As práticas religiosas se tornaram tão diversas, que qualquer definição do que seria um “método religioso” acaba sendo muito vago. Isto torna a minha crítica difícil, porque sempre será possível me responder que não entendi bem a essência do pensamento de um autor e me opor o pensamento de outro. Assim, existem muitas interpretações possíveis e coerentes dos textos sagrados de todas as religiões que constituem diversas teologias. Para tentar evitar esta dificuldade, vou restringir a minha crítica aos quatro eixos que me parecem caracterizar as principais atitudes que os defensores da fé adotam hoje frente ao materialismo científico.
Em primeiro lugar, a teoria do concordismo. Ou seja, a ideia que a ciência bem entendida leva necessariamente à religião.
Em segundo lugar, a doutrina que afirma que existem diferentes níveis de conhecimento, um reservado à ciência, outro à teologia.
Em terceiro lugar, a tese defendida hoje pelo paleontólogo Steven Jay Gould em (Gould 1999) chamada de NOMA (Non Overlapping MAgistreria) que explica que ciência e religião não podem entrar em conflito porque uma trata de fatos enquanto a outra trata de valores.
E finalmente, aquilo que pode ser chamado de subjetivismo ou pós-modernismo cristão.
Detalho agora a natureza da incompatibilidade que anunciei um pouco mais cedo:
A raiz da oposição entre ciência e religião se cristaliza principalmente nos métodos que a humanidade deve utilizar para conseguir conhecimentos confiáveis, qualquer que seja o objeto destes conhecimentos.
Um dos principais efeitos que o nascimento das ciências modernas, na época dos Iluministas, teve na nossa maneira de pensar é a conscientização dos limites que a condição humana impõe às nossas capacidades de adquirir conhecimentos que vão além da simples experiência. E vamos vê-lo mais a frente, a consciência destes limites é uma fonte importante de erros intelectuais levando a acreditar numa ou mais das 4 doutrinas acima citadas. Estes erros são muitas vezes cometidos por cientistas renomados.
O concordismo
Não lhe parece absurdo o espetáculo de seres humanos que, ao olhar um espelho refletindo as suas próprias imagens, pensam que aquilo que estão vendo é tão excelente que deve provar a existência de uma Intenção Cósmica que desde sempre tinha este objetivo? […] Se eu fosse todo-poderoso e se tivesse bilhões de anos para experimentar com objetivo final o Homem; eu não consideraria ter muitas razões de me vangloriar.
Russell, 1961. P. 221-222. Tradução livre.
A ideia de uma convergência entre ciência e religião é antiga, mas depois de um relativo esquecimento durante alguns anos, ela parece voltar à moda2. Os seus defensores afirmam que a ciência contemporânea oferece bons argumentos para existência da transcendência; ao contrário da ciência clássica e materialista do século XVIII. Dizem que a mecânica quântica, o teorema de Gödel, o Big Bang e às vezes a teoria do Caos, providenciam uma imagem re-encantada do mundo, mostram os limites da ciência e por tanto sugerem um além (do natural, um sobrenatural). Um exemplo típico desta ideia é o princípio antrópico: Alguns físicos calcularam que, se algumas constantes físicas tivessem sido apenas um pouco diferente do que são, o universo teria sido radicalmente diferente e, em particular, a vida do homem teria sido impossível. Logo, existe aqui alguma coisa que não entendemos; o universo parece ter sido fabricado de maneira muito precisa para que possamos ser parte dele. Em realidade, trata-se de uma nova versão daquilo que os anglo-saxões chamam de the argument from design, ou seja, que o universo foi feito em função de algum tipo de finalidade e que esta mesma finalidade testemunha da existência de um Grande Arquiteto.
O primeiro nível de resposta consiste em voltar às definições exatas destas teorias. Em geral, descobre-se que um mau entendimento da teoria levou a inferir transcendência em primeiro lugar. A título de exemplo, detalho a seguir o caso dos teoremas de Gödel.
Nos dois teoremas de “incompletude” de 1931 (Gödel 1931), Kurt Gödel demonstra que dentro de um sistema de axiomas coerente e suficientemente expressivo, na hipótese que a aritmética de Peano seja um sistema completo, existe a possibilidade de fabricar enunciados cuja validade não pode ser demonstrada dentro deste mesmo sistema axiomático (pelas próprias regras do sistema). Alguns extrapolam disso que devem existir, na realidade, propostas verdadeiras que não possam ser demonstradas, ou dito rapidamente: existem Verdades não demonstráveis. Para chegar a tal conclusão, deveríamos demonstrar que a realidade (ou pelo menos a língua natural) é um sistema axiomático coerente e expressivo, o que é longe de ser verificado! Sistemas formais são criações puramente humanas, são objetos abstratos do mundo das matemáticas. Eles foram desenvolvidos com o objetivo de formalizar a aritmética. Não existe nenhuma razão para que sejam uma representação fiel do mundo natural! O conceito de “verdade” na demonstração do Gödel, não têm o mesmo significado que em teologia e nem em ciências experimentais. Uma proposição é “verdadeira”3 dentro de um sistema axiomático quando a introdução neste sistema da negação lógica da proposição conduz a uma incoerência formal. Obviamente, esta definição da “verdade” é muito afastada do significado que lhe é dado por aqueles que ainda acreditam que Gödel demostrou que existem verdades da natureza que não são demonstráveis.
Poderíamos continuar com todas as teorias utilizadas como argumentos de convergência e mostrar que, quase sempre, uma má compreensão da teoria leva a inferir transcendência.
Além da má compreensão frequente destas teorias, gostaria de oferecer outras naturezas de respostas à tais argumentos:
Os cientistas não-crentes, respondem de diversas maneiras ao princípio antrópico: Pode-se dizer, por exemplo, que a situação é temporária e que outros fenômenos, no passado, foram considerados como provas evidentes da existência da Providência, assim como foi no seu tempo a extrema complexidade dos seres humanos; complexidade pela qual temos hoje explicações científicas robustas. Por outro lado, nada garante que o universo observado seja o único que existe e se existirem vários com propriedades físicas diferentes, estaríamos necessariamente num daqueles onde a vida é possível (Weinberg 1997) p. 224. Mas isto não responde à raiz do problema.
A tradição religiosa combinada a um narcisismo óbvio nos deixou a ilusão de que estamos no centro do universo, e que somos o topo da criação. Mas na visão científica do mundo somos, metaforicamente, nada mais que um pouco de pó perdido num planeta em algum lugar do universo (Galileo), ao qual a pressão da seleção natural deu um cérebro (Darwin). Em particular, não existe nenhuma razão de acreditar que possamos responder todas as perguntas que fazemos4. E é perfeitamente normal que algumas coisas do mundo sejam sem explicações e misteriosas. O contrário seria muito estranho. Cachorros e gatos não tem o menor entendimento de vários aspectos dos seus ambientes. Devemos deduzir disto que existe transcendência para eles? Por que reagir de outra maneira quando se trata do animal particular que é o homem? É claro que a ciência cada vez mais faz progredir o nosso conhecimento, mas ela não elimina a nossa perplexidade. Quanto mais progredimos, mais tocamos em realidades muito pequenas (com a mecânica quântica) ou muito grandes e antigas (cosmologia) e é perfeitamente razoável de se esperar que o mundo nos apareça cada vez mais estranho. O melhor remédio psicológico contra os desvios metafísicos provenientes dos limites das ciências é de mudar a nossa perspectiva: O mundo não é mágico, mas nós somos ignorantes!
Os defensores do concordismo às vezes respondem que a análise objetiva do mundo sugere a existência de uma transcendência e que não existe nenhuma razão de rejeitar esta hipótese; esta transcendência pode ser invisível, assim como os campos eletromagnéticos ou a força da gravitação não são observáveis direitamente. Observamos as suas consequências e daí, inferimos as suas existências. Por que então não proceder da mesma maneira com Deus? A razão é muito simples: como especificar o que é Deus? Quando é feita uma hipótese científica, tenta-se formulá-la de maneira matematicamente precisa e deduzem-se consequências observáveis. Como proceder assim com o transcendental? É impossível, quase que por definição. Consideramos, por exemplo, a ideia que Deus é onipotente: o que isto significa exatamente? Que ele pode modificar as leis da física? Ou até as leis da aritmética? (por exemplo, fazer que 1+1 = 3)? Pode Deus se opor ao livre arbítrio humano? Pode ele impedir sofrimento? Sem dúvida, teólogos dão respostas coerentes a estas perguntas. O problema é que é relativamente fácil encontrar vários conjuntos de respostas coerentes para quase qualquer pergunta, mas é muito difícil, sem realizar testes empíricos, saber qual é a boa resposta.
Obviamente é possível dar um conteúdo mais preciso à ideia de divindade, utilizando tal ou tal revelação. Mas acaba então realizando um raciocínio circular. Não podemos aceitar por princípio que se trata da palavra de Deus: muito pelo contrário, isto é exatamente aquilo que deve ser estabelecido! E não existe nenhuma revelação que seja empiricamente correta nos domínios onde podemos verificá-la. Por exemplo, a Bíblia não é muito exata no que se refere à geologia ou história natural. Por que, então, confiar nas suas asserções sobre domínios nos quais ela não é diretamente verificável, tal como as características do divino?
Alguns cientistas renomados acabam caindo nas armadilhas do concordismo. Assim, o biólogo Richard Dawkins explica que declarou um dia para um filósofo, que não podia imaginar ser ateu antes de 1859, quando foi publicada a Origem das Espécies de Darwin (Dawkins 1997). Aquilo é uma crítica implícita à atitude dos ateus do século XVIII. Mesmo sem o conhecimento de Darwin, eles não estavam errados: Imaginamos por um instante que alguém demonstre que todos os dados geológicos, biológicos e outros dados da evolução são um erro gigantesco e que a nossa Terra tem 10.000 anos de idade. Sem dúvida, muitos crentes e principalmente os mais ortodoxos gritariam de prazer. Contudo, eu não poderia considerar tal descoberta como um argumento a favor deles. Esta descoberta mostraria simplesmente que não temos explicação nenhuma para a diversidade e a complexidade das espécies. Bem, e daí? O fato que não entendamos nada sobre um fenômeno não implica necessariamente que qualquer outra proposta dogmática (teológica, por exemplo) se torne subitamente válida.
A frase famosa do Dr. Jacques Monod: “O homem agora sabe que ele está sozinho na imensidão do Universo de onde ele emergiu por sorte5” (Monod 1970) admite também uma certa ambiguidade. O que significa “sorte”? Se isto significa que o homem não era predestinado, isto não é realmente uma descoberta científica: as explicações formuladas como causas finais foram abandonadas por razões semelhantes àquelas que levam a abandonar também explicações de natureza religiosa (impossibilidade de formulá-las de maneira a poder testá-las). Mas, se a palavra “sorte” se refere à aquilo que não têm causa (antecedentes), então a frase somente expressa a nossa ignorância em relação à origem da vida ou certos aspectos de sua evolução. O aleatório não é nem causa, nem explicação de Deus. Assim, Laplace, “mecanista” do século XVIII, escrevia em relação aos “eventos”:
Na ignorância dos vínculos que unem eles ao sistema inteiro do universo, declaramos que eles dependem de causas finais ou do aleatório, em função das suas ocorrências sendo regulares, ou sem ordem aparente; mas estas causas imaginárias foram aos poucos empurradas junto com os limites do conhecimento, e acabam desaparecendo totalmente frente à filosofia sana que somente vê nelas a expressão da nossa ignorância das causas verdadeiras.
Laplace, 1986. P. 32. Tradução livre.
Finalmente, o Deus supostamente descoberto pela ciência, assim como o aleatório, são outros nomes que utilizamos para vestir a nossa ignorância com a aparência da dignidade.
Uma anedota para acabar este parágrafo: Quando a Igreja católica decidiu reconhecer que estava errada no caso de Galileo (concluindo uma investigação que durou de 1981 a 1992), o cardeal Poupard declarou, na presença do Papa: “alguns teólogos contemporâneos de Galileo não souberam interpretar o significado profundo, não literal, das Escrituras” (Documentation Catholique 1992) p. 1070, citado por (Lambert 1999) p. 65. Mas nem ele, nem o Papa parece mensurar a importância do fato que foi a ação corajosa de milhares de céticos que levou os teólogos a descobrir este “significado profundo”6. Não consigo deixar de ser perplexo frente ao comportamento de uma divindade que se revela nas Escrituras, cujo verdadeiro significado fica totalmente fora do alcance dos crentes mais eruditos durante séculos e que acaba sendo entendido graças ao trabalho de céticos… As vias da Providência são realmente impenetráveis…
Diferentes níveis de conhecimento: uma realidade de outra ordem?
Qualquer conhecimento deve ser alcançado por métodos científicos; e aquilo que a ciência não pode descobrir, a humanidade não pode conhecer.
Russell, 1961. P. 243. Tradução livre.
Uma atitude tradicional, consiste muitas vezes em rejeitar a ideia de uma convergência entre ciência e fé e se apoia na ideia de que a teologia ou a reflexão religiosa dá acesso a conhecimentos de uma natureza diferente daqueles que produz a ciência. Um exemplo de crítica do concordismo do ponto de vista católico é dado por (Lambert 1995). Geralmente, esta atitude começa por um discurso onde se observa que o método científico produz um conhecimento muito parcial da realidade. De fato, o mundo tal como é representado pela ciência é bastante estranho: Onde podemos encontrar neste universo de moléculas, partículas, forças, campos, etc. aquilo que nos parece ser a especificidade do ser humano: as nossas sensações, os nossos desejos, os nossos valores? Não deveríamos utilizar outra abordagem, não científica, para apreender este aspecto fundamental da realidade? E esta outra abordagem poderia nos indicar o caminho da transcendência?
Esta questão é o centro de muitas confusões, e para respondê-la devemos detalhar as nossas diversas maneiras de conhecer. É de notar em primeiro lugar, que a grande maioria dos nossos conhecimentos não são científicos no sentido estrito da palavra. São os conhecimentos da vida quotidiana, conhecimentos ordinários. Contudo, estes conhecimentos não são radicalmente diferentes das ciências já que ambos tentam produzir uma explicação objetiva da realidade e que ambos são fabricados combinando observações, raciocínios e experiências. Depois, existe a abordagem introspectiva e intuitiva da realidade que nos permite tomar conhecimento dos nossos próprios sentimentos e, às vezes, adivinhar os sentimentos dos demais. É desta forma que conseguimos acessar o mundo das sensações e da consciência. Vincular este mundo subjetivo ao mundo objetivo descrito pela ciência é uma tarefa complexa. E, de novo, temos uma forte tendência a afirmar que a ciência é limitada na sua explicação desses fenômenos. Mais uma vez, podemos argumentar que a situação é temporária e, mais que tudo, não devemos esquecer que é perfeitamente normal ter uma relação com a realidade que nos deixe perplexos e insatisfeitos.
Para ilustrar o fato de que esta situação é temporária, e que este domínio da realidade é apreensível também pela ciência, basta tomar conhecimento dos imensos progressos e das descobertas recentes das neurociências (Trappenberg 2002), da psicologia da cognição e da psicologia científica. Gostaria de destacar também os trabalhos do Gerald Edelman sobre a “biologia da consciência” (Edelman 1992). Ele propõe uma abordagem objetiva e científica para explicar a consciência a partir da biologia.
A religião utiliza às vezes o caráter subjetivo da nossa experiência para justificar as suas asserções. Temos a sensação “que existe algo que vai além de nós” ou temos a impressão de estar em relação imediata com uma entidade espiritual, o que no extremo, acaba em experiência mística. Mas como garantir que a nossa experiência subjetiva nos dá acesso à entidades que realmente existem fora de nós, como Deus, por exemplo, e não somente à ilusões? No final, existem tantas experiências subjetivas diferentes, que torna difícil acreditar que todas levam a alguma verdade. Como escolher entre elas a não ser utilizando critérios não subjetivos? Mas utilizar tais critérios conduz a deixar de lado o caráter de prova da experiência subjetiva.
Por outro lado, postular a existência de uma alma para explicar a consciência7 é tão ilusório quanto postular a existência de uma divindade para explicar o universo. A alma é imortal? Ela aparece no nascimento ou na concepção? Como pode interagir com o corpo? Esta interação é em violação das leis da física? Respeita a conservação de energia? É obviamente impossível responder estas perguntas concretas ou, melhor falando, é possível dar várias respostas, mas não existe nenhum critério para escolher entre elas. No final das contas, a nossa abordagem subjetiva do mundo não nos permite inferir a existência de seres postulados pela religião (Deus, a alma, etc.) mais do que uma abordagem objetiva.
Na realidade, utilizar a vida interior como sinal de uma transcendência é uma espécie de regressão em relação à metafísica clássica. A metafísica tenta atingir outro nível de realidade utilizando não a nossa intuição, mas as nossas capacidades de raciocínio a priori. Hume resumiu muito bem o problema de tal abordagem:
A raiz cúbica de 64 é igual à metade de 10, isto é uma proposta falsa e nunca será concebida diferentemente. Mas César nunca existiu, ou o anjo Gabriel, ou qualquer outro ser não existem são proposições talvez falsas, mas podem ser perfeitamente concebidas e não levam a nenhuma contradição. Portanto, somente se pode provar a existência de um ser por argumentos extraídos da sua causa ou do seu efeito; e estes argumentos se fundamentam inteiramente na experiência. Se raciocinamos a priori, então qualquer coisa pode parecer capaz de produzir qualquer outra coisa. A caída de uma pedra poderia apagar o sol; ou o desejo de um homem poderia governar os planetas nos suas órbitas. Só a experiência pode nos ensinar a natureza e os limites da causa e do efeito e nos tornam capazes de inferir a existência de um objeto a partir da existência de outro.
Hume, 1983. P. 46. Tradução livre.
O que Hume mostra claramente é que somos prisioneiros das nossas capacidades cognitivas: se raciocinamos a priori, então devemos limitar-nos aos objetos matemáticos; mas se estamos interessados em questões de fatos, temos que utilizar argumentos fundamentados “inteiramente na experiência”. Raciocinar a priori sobre objetos não matemáticos e vagos tais como a Substância ou o Ser somente produz “sofismas e ilusões”.
Os Iluministas tinham entendido muito bem que somente a abordagem científica pode providenciar conhecimentos objetivos aos quais o ser humano tem acesso. Essa abordagem nos dá uma visão parcial da realidade por que não temos acesso, por sermos de natureza finita, à realidade última das coisas. Mas existe uma diferença imensa entre afirmar que a ciência providencia uma explicação completa da realidade, e dizer que a ciência nos dá o único conhecimento acessível ao humano. A confusão entre estas duas propostas é, às vezes, bem mantida por crentes para atacar o cientismo e sugerir que não somente existem questões às quais a ciência não tem resposta, mas que existem outras maneiras de trazer respostas confiáveis.
NOMA – Domínios de competência distintos
A Bíblia diz: “Não deixarás uma bruxa viver […]” Cristãos liberais e modernos, que afirmam que a Bíblia é válida de um ponto de vista ético, tendem a esquecer tais textos assim como os milhões de vítimas inocentes que morreram em grande sofrimento, porque, no passado, pessoas realmente utilizaram a Bíblia como guia de conduta.
Russell, 1961. Tradução livre.
Os dois eixos argumentados acima defendiam o lugar da teologia frente à ciência. Vamos agora observar posições de retaguarda que se tornaram mais populares para alguns crentes depois de se dar conta que as posturas “fortes” eram insustentáveis. Uma primeira posição consiste em separar totalmente os domínios: a ciência trata de julgamentos factuais e a religião se preocupa com outros julgamentos: valores, sentido da vida, etc. Insisto na diferença desta posição com a precedente: a abordagem “metafísica” tenta chegar a verdades de outra natureza que científicas, contudo factuais (a existência de Deus, etc.).
Esta separação dos domínios é defendida por alguns intelectuais, como, por exemplo, o paleontólogo S. J. Gould, que se declara agnóstico. Ele quer defender a teoria da evolução contra os ataques criacionistas permitindo que a religião possa guardar algum lugar na cultura. Imagino que esta posição possa satisfazer alguns crentes, mas ela com certeza não é compatível com a postura de muitos que consideram a metafísica religiosa como uma verdade objetiva.
De uma certa maneira, eles estão certos: Se deixarmos todas as questões de fatos para o domínio da ciência e se rejeitarmos o concordismo, como então justificar os julgamentos religiosos sobre questões de valores e sentido da vida? A partir dos ensinos contidos dentro de tal ou tal revelação? Em função de que escolher uma revelação mais do que outra a não ser que ela expresse a “verdadeira” palavra de Deus? Esta asserção nos leva imediatamente de volta à questões ontológicas. Será que temos que seguir o exemplo de uma pessoa supostamente admirável tal como Jesus Cristo? Mas o que sabemos cientificamente da vida dele? Pouca coisa em verdade! Por que então não seguir o exemplo de alguém cujas ações são conhecidas com mais certeza? E se a vida real não tiver importância, então, por que não inventar totalmente um personagem cuja vida seria ainda mais admirável e que deveria ser seguido? Finalmente, os princípios morais religiosos encontram o mesmo problema que a interpretação não literal das Escrituras: nenhum crente aceita acompanhar ao pé da letra as prescrições éticas bíblicas. Então como selecionar, a não ser utilizando ideias morais independentes da revelação? E se tiver que avaliar elas no auge de critérios exteriores, de que serve esta moral religiosa?
Citando Hume, muitos afirmam que não se pode deduzir logicamente julgamentos de valor a partir de julgamentos de fato. É provavelmente verdade, mas isto não significa que não exista uma maneira científica de raciocinar em ética que, de novo, se opunha à atitude religiosa. Esta maneira científica pode ser, por exemplo, o utilitarismo que se fundamenta no único princípio ético não factual de maximizar a felicidade. Obviamente, este princípio não pode ser justificado cientificamente. Mas, uma vez postulado (parece ter um caráter intuitivamente óbvio), qualquer julgamento moral pode ser reduzido à perguntas do tipo “será que tal ação vai aumentar a felicidade global?”. E tais julgamentos se tornam factuais.
É claro que os adversários desta abordagem apontam o vago da definição de felicidade e que cálculos utilitaristas são muitas vezes impossíveis de ser realizados. Todo isto é verdade. Mas qual alternativa podemos propor? Podemos justificara contrario essa doutrina notando que é difícil imaginar uma ação moralmente justificada quando aquele que a efetua sabe que vai diminuir a felicidade global.
Esta abordagem choca frequentemente porque ela se opõe fundamentalmente a dois aspectos bem ancorados nas nossas reações frente a problemas éticos: o primeiro é o respeito da moral tradicional, a obediência à autoridade, à comunidade, ao Estado ou aos preceitos religiosos. Para um utilitarista, todas estas tradições devem ser criticadas e avaliadas à luz da maximização da felicidade global. O segundo aspecto contempla todas as vontades de vinganças e de punições. Do ponto de vista dessa doutrina, qualquer sanção deve ser justificada somente em função da felicidade global e não do desejo de alguns de punir os maldosos. Em particular, o utilitarismo não se preocupa com o problema do livre arbítrio; não precisa negá-lo e não precisa saber se as ações humanas são “verdadeiramente” livres (e com que significado?). Aquilo é provavelmente uma posição filosófica prudente. Finalmente, nessa abordagem, existem progressos em ética como em ciência, e podem ser alcançados pela observação e pelo raciocínio. Pode-se, por exemplo, observando a natureza humana, descobrir que a pena de morte não é boa (ela não reduz a quantidade de crimes, então não participa do aumento da felicidade global. Ela serve somente desejos de vingança e punição), e que em certas circunstâncias, o aborto pode ser bom.
Finalmente, uma religião da qual eliminamos todos os julgamentos de facto esvazia-se de todo seu conteúdo. E qualquer que seja a aceitação do princípio do utilitarismo (pode-se postular outros princípios), é possível apreender problemas éticos de maneira científica e racional. Este domínio não é por tanto exclusivo da religião. A postura do NOMA é, portanto, insustentável.
Subjetivismo – acreditar para se sentir bem
Eu poderia ser mais feliz e terei certamente melhores maneiras, se acreditasse ser descendente dos imperadores chineses, mas não existe força de vontade minha que chegaria a me convencer; não mais que posso impedir o meu coração de bater.
Weinberg, 1997. P. 230. Tradução livre.
Existe uma tradição de “revolta contra a razão” que consiste em rejeitar toda e qualquer discussão dos temas precedentes, admitindo que não existem argumentos racionais em favor da religião, e que no final, tudo se trata de uma escolha pessoal. Pode crer, mesmo se for absurdo! Ou ainda, trata-se de um compromisso, de um estilo de vida: faz os “gestos da fé”, rezar, implorar, e acaba acreditando. Estas atitudes se tornaram muito frequentes com a subida do “pós-modernismo”, e com a ideia que aquilo que importa não é saber se o que diz é verdadeiro ou falso, porque talvez nem exista distinção entre verdadeiro e falso. O que conta são os efeitos práticos de uma crença e o papel social que ela tem num grupo de pessoas.
Na sua forma pós-moderna mais radical, o problema da contradição entre diferentes crenças religiosas nem entra em questão. Recorre-se à doutrina das verdades múltiplas: o fato de que ideias mutuamente contraditórias possam ser verdadeiras simultaneamente. Tem quem acredita no céu e no inferno, quem acredita na reincarnação, quem pratica o New Age e quem conta com extraterrestres nos seus ancestrais. Todas estas posturas são “igualmente verdadeiras”, mas com um qualificativo do tipo “para aquele que acredita” ou “dentro da sua cultura”.
É obviamente inútil atacar esse tipo de postura com argumentos racionais (parece que todo e qualquer tipo de raciocínio foi excluído em princípio dessas posturas). Portanto, vou me limitar a formular duas ideias de caráter moral.
Em primeiro lugar, esta postura não é sincera. É só olhar as escolhas da vida quotidiana: quando deve-se escolher uma casa, comprar um veículo, escolher um médico ou uma terapia, até os subjetivistas os mais enraizados comparam diversas possibilidades e tentam realizar escolhas racionais8. É somente para questões metafísicas sem consequências práticas imediatas, que tudo se torna uma questão de desejo e escolha subjetivos.
Em segundo lugar, essa postura é perigosa, porque subestima a importância da noção de verdade objetiva, independente dos nossos desejos e das nossas escolhas: sem nenhum critério para avaliar e escolher entre opiniões contraditórias, só nos resta a violência e a força para concluir.
O Steven Weinberg escreve de maneira muito perspicaz a respeito do subjetivismo:
É muito estranho que a existência de Deus, a Graça, o pecado, o inferno e o paraíso não tenham nenhuma importância! Estou inclinado a pensar que, aquele que adota tal atitude frente à questões teológicas na realidade não consegue admitir que ele não acredita em nada disto.
Weinberg, 1997. P. 229. Tradução livre.
Síntese
Tentei mostrar através deste texto que existe uma incompatibilidade fundamental entre religião e ciência, ou ainda entre Fé e razão, quando se trata de adquirir conhecimentos confiáveis, qualquer que seja o objeto do estudo.
Através da minha crítica ao concordismo, insisti nos limites da ciência: Por proceder de raciocínio e observações humanas, tudo indica que os conhecimentos que desta maneira podemos adquirir são limitados. Mas estes limites, que sejam temporários ou estruturais, não implicam necessariamente a transcendência.
Em seguida, tentei mostrar que a postura religiosa que parte das nossas vidas interiores (sensações, experiências subjetivas e “místicas”) não consegue inferir de maneira confiável transcendência ou existência de alma. Em contrapartida, a ciência começa a produzir resultados testáveis e verificáveis sobre a consciência e em diversos campos da psicologia. Em segundo lugar, opus às tentativas religiosas de demonstrar outras naturezas de realidade por raciocínio puro, a argumentação do Hume para quem qualquer raciocínio a priori leva a “sofismas e ilusões”.
Mostrei a seguir que a postura do NOMA é inviável: rejeitar o concordismo e declarar que religiões tratam de valores enquanto ciência trata de fatos conduz a esvaziar de todo seu conteúdo as religiões. Também ilustrei o utilitarismo para mostrar que a ética também pode ser apreendida de maneira científica. Neste domínio do conhecimento também, ciência e fé entram em conflito.
Finalmente, mencionei a postura não sincera e arriscada do subjetivismo ou pós-modernismo. Essa doutrina, por evacuar todo e qualquer tipo de raciocínio, e por considerar que crenças contraditórias possam ser verdades simultâneas, também não consegue produzir conhecimentos confiáveis.
Postura ateia
Gostaria de resolver uma ambiguidade sintáxica: a tese que defendo aqui, que se fundamenta nos limites dos conhecimentos (confiáveis) aos quais a humanidade tem acesso, é muitas vezes considerada como uma forma de agnosticismo mais do que ateísmo. Trata-se, ao meu ver, de uma confusão. Assim, por exemplo, o Papa não se diria “agnóstico” em referência aos Deus do Olimpo. Em relação a eles, ele é, como quase todos nós, ateu. Este raciocínio é válido também para todas as religiões africanas, da polinésia, etc. Imagino que os teólogos mais ortodoxos concordam comigo quanto a enorme maioria das religiões existentes ou que existiram. Ninguém provou que Afrodite não existiu.
Existem dois tipos de agnósticos. Tem aqueles que constatam que não existe nenhuma razão válida de crer em uma divindade qualquer e que utilizam esta palavra para nomear a sua postura; o que não é fundamentalmente diferente do ateísmo. De fato, nenhum ateu pretende possuir argumentos que provam a inexistência das divindades. Simplesmente constatam que, frente à multiplicidade de crenças e opiniões, deve ser feita uma seleção (ou aceitar o pluralismo ontológico dos subjetivistas) e além disto, eles afirmam que dizer que não existe nenhuma razão para crer na existência de um ser é equivalente a negar a sua existência (até prova ao contrário). Por outro lado, existem pessoas que se declaram agnósticas por pensar que os argumentos em favor do deísmo não são totalmente convincentes, mas talvez válidos; ou ainda por fazer uma distinção entre as religiões da antiguidade e uma religião contemporânea. Esta atitude é de fato muito diferente do ateísmo.
Creio que, em geral, o fenômeno da Fé é quase independente dos argumentos pseudo-racionais acima discutidos. Imagino que a maioria das pessoas que aceitam uma Fé não o fazem porque foram impressionadas pelo argumento antrópico, mas, porque respeitam tradições nas quais foram criados, porque temem a morte ou ainda acham prazeroso que um ser todo-poderoso possa cuidar dos seus destinos. Mas em todo caso, quando se trata de adquirir conhecimentos confiáveis sobre o mundo, sobre eu mesmo ou os meus similares, somente o materialismo científico é pertinente.
1 Esta frase pode parecer brutal hoje, mas devemos lembrar que naquela época (1748) os teólogos eram em geral aqueles que acendiam os fogos para queimar os infiéis.
2 A fundação Templeton é uma das instituições mais ativas na propagação desta ideia. Podemos citar também a UIP (Université Interdisciplinaire de Paris) na Europa.
3 Alguns matemáticos preferem a palavra de “válida”.
4 Por exemplo: “por que existe algo no lugar de nada?”
5 O autor utiliza a palavra francesa “hasard” mais próxima do sentido de “aleatório”.
6 Estes teólogos não somente foram opostos ao Galileu, mas também à ideia de que cometas não são objetos sublunares, que o sol tinha manchas, assim como à emergência da geologia, à teoria da evolução, à abordagem científica da psicologia e a inumeráveis tratamentos medicinais.
7 Isto é mais ou menos a atitude do astro físico Polkinghorne que considera a consciência como um sinal intrínseco de um criador. É também de se notar que o Papa admite a evolução do corpo, mas considera que existe um salto ontológico quando se trata do espírito humano.
8 Embora, no que se refere à escolha de terapias, alguns têm escolhas às vezes bizarras…
Referências
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